Monday, June 16, 2014
Milágrimas
celebra a interação cultural e artística entre o Brasil e a África do Sul de
várias maneiras: pela fusão musical de duas culturas no CD com trilha sonora
exclusiva; no palco, pela coreografia criada a partir da música e do canto
popular; no livro Tenso equilíbrio na
dança da sociedade, que fala de inclusão social de jovens por meio da
cultura e da arte. Porque canta a letra de Alice Ruiz para a música de Itamar
Assumpção: "a cada mil lágrimas, sai um milagre". Neste caso, o
milagre que faz brotar lágrimas de alegria no público é a inclusão social dos
41 jovens da periferia paulistana que, no palco, viram gigantes da dança, das
artes. Bertazzo tem uma Broadway e
uma Sapucaí dentro de si. E este corpo de baile carrega um Bolshoi n'alma. São
mágicos juntos: com três degraus e um enorme tecido fazem um oceano, para unir
mais Brasil e África. Nova temporada, novo milagre. Bravíssimo!
Cris Campos
Participamos
da coletiva de estreia nacional de Milágrimas, segundo espetáculo do
projeto Dança Comunidade, que uniu o coreógrafo Ivaldo Bertazzo e o SESC São
Paulo. Mas Milágrimas vai além do
palco, transborda. Gerou o CD com a trilha sonora do show - 11 pérolas, com participações
brilhantes de músicos brasileiros e sul-africanos. E inspirou o livro Tenso equilíbrio na dança da sociedade,
com artigos e fotos. O
espetáculo que deu nome ao CD é prova viva do sucesso de iniciativas de
educação, cultura e arte que resgatam jovens do abandono social e multiplicam
seus talentos. Muito trabalho que dá resultado: Milágrimas está pronto para ganhar o mundo. Porque "a cada mil
lágrimas sai um milagre".
Milágrimas é um poderoso encontro de artistas
dos dois lados do Atlântico: do Brasil e da África do Sul. Nasceu da pesquisa
de Ivaldo Bertazzo sobre as duas culturas. Revelada a "ponte" quando
se descobriu a Isicathamiya,
manifestação cultural sul-africana que une passos de dança com um delicado
canto popular, a capela ou coro, criado pelos mineiros de ouro de Johanesburgo.
Os músicos do grupo Kholwa Brothers
vieram ao Brasil tocar com brasileiros pela primeira vez. Foi tudo natural,
desde o primeiro acorde que acabou com as barreiras da língua. A língua
universal da música calou as diferenças.
E
veio a dança, enriquecida com os coreógrafos convidados. O palco foi cercado
por três degraus de madeira. Virou trono. Recebe os movimentos do samba e das
danças africanas, oriente e ocidente do mesmo oceano. Acalenta o canto da
trilha e dos dançarinos-cantores, que veio dos mineiros do ouro, mas também
guarda em si as vozes de Serra Pelada e as lavadeiras nos riachos e as romarias
do Nordeste. E as máscaras que remetem ao carnaval e aos rituais dos nobres
guerreiros africanos. Fato é que o resultado foi além. Porque até os dançarinos
do Dança Comunidade cantam, em duas faixas da trilha. Tudo redondinho.
***
Falas dos criadores de
Milágrimas
Durante
a entrevista coletiva de lançamento nacional do espetáculo Milágrimas, os seus criadores falaram do making of do projeto, que
ainda inclui trilha sonora exclusiva e livro com dez artigos de diferentes
especialistas. Sobre a primeira fase do Projeto Dança Comunidade, que cria nova
metodologia de inclusão de jovens por meio da cultura e de atividades
multidisciplinares, destacamos a seguinte síntese:
"Não
é uma viagem de turismo. Ele (o jovem) passa por um período de trabalho, de
organização e aprende como é trabalhar em equipe. Isso o fortalece e o coloca
dentro de uma inclusão. Por que não falar duas línguas? Para estrategicamente
transitar entre dois mundos. Estamos
ensinando um público de elite a observar esses corpos. É um touro indomável,
que tem a tipologia brasileira de um corpo misto. É diariamente uma nova
construção. Porque o gestual pode transformar o ensino do movimento para o
jovem. Ele estuda primeiro a música, a sonoridade. O Carlinhos Brown, a
escola Pracatum e no Candeal, faz isso. É
um trabalho para a construção de um corpo no espaço e para o raciocínio... com
o pé firme no chão. Depois, é só levar isso para a dança. E é um grande prazer
vê-los."
(Ivaldo Bertazzo, coreógrafo,
bailarino e diretor do Milágrimas)
* * *
Danilo Santos de
Miranda, Diretor
Regional do SESC SP, destacou o caráter de "educação permanente" do
projeto Dança Comunidade, que beneficia 41 jovens da periferia de São Paulo.
Para Miranda, trata-se de uma "ação
cultural-educativa", que integra "cultura, artes, esporte,
lazer". A parceria do SESC com Ivaldo Bertazzo, que existe há mais de 20
anos, proporciona uma "ação mais integradora com a questão social,
educadora", que "discute o percurso das pessoas na periferia, nas
favelas". Este "trabalho
educativo", que contempla "corpo, a expressão" gera um
"resultado estético e artístico reconhecido", graças à realização
do SESC e do Bertazzo e sua escola de reeducação do movimento, empresas e
instituições, pessoas, todos "portadoras dessa nova metodologia", que
gera, na prática, "profissionais, multiplicadores do projeto".
* * *
Ivaldo Bertazzo, coreógrafo, bailarino, professor
de dança e terapias corporais e diretor do espetáculo Milágrimas e da Escola de Dança Ivaldo Bertazzo - Reeducação do
Movimento, disse que é fundamental "trazer o jovem da periferia para o
centro", para compensar a "má circulação" e a não possibilidade
deste cidadão "usufruir de centros culturais, museus" e locais que
podem contribuir para "formar a qualidade de gesto" destes jovens.
Bertazzo disse que a parceria com o SESC representa abrir para estes jovens
"um espaço cultural com piscina", "sala limpa e
silenciosa". "Não dá para fazer um trabalho estético com
barulho", afirmou. Todo este suporte, "para este jovem, é
necessário" para a "formação de um método, para trabalhar numa esfera
estética com disciplina". "Tem que trazê-lo e ensiná-lo ao máximo,
com aula de música, de português" (e ainda canto, percussão, ritmo,
lingüística, saúde, história da dança e reeducação do movimento, com
coordenação motora).
Bertazzo
contou que o Projeto Dança Comunidade está na sua primeira fase, de quatro
anos. "É a criação de um método,
que requer investimento em pesquisa de como tocar, dançar, trabalhar, criar
toda uma linguagem".
* * *
Benjamim Taubkin, instrumentista, arranjador,
compositor, produtor e diretor do selo Núcleo Contemporâneo, e diretor musical
do espetáculo Milágrimas, disse que a
"fusão musical", "a
música faz parte de uma coisa maior" no projeto. Conta que Ivaldo lhe
apresentou "uma proposta para um desafio", que achou "interessante".
"Eu me sinto como viajando pelo mundo", disse, porque "a África
que veio... não é a conhecida para nós, músicos", porque tem influências
"basicamente religiosa, muito especiais", é "um trabalho pronto,
praticamente uma escultura sonora pronta".
Quando
pôde unir a tradição isicathamiya com bases fortes da nossa MPB (Música Popular
Brasileira), Benjamim disse que Nelson Cavaquinho e Itamar Assumpção, por
exemplo, enquanto representantes da "música tradicional brasileira"
casaram muito bem com "a música africana". Cita dois exemplos disso:
Sapopemba, cantor brasileiro que participa do Milágrimas, disse que "um dos tesouros que o Brasil tem é um
HD de música tradicional"; e os músicos africanos afirmaram que "o
Brasil tem uma coisa importante: Sapopemba".
Benjamim
relata que não houve barreira entre os talentos dos músicos do Brasil e da
África do Sul. "Começaram a cantar e a resposta foi imediata, tudo foi
espontâneo e no primeiro encontro".
Quando
resume a vivência com o espetáculo Milágrimas,
o diretor musical diz: "A visão que
o Ivaldo tem, como ele pensa a música e fazer um espetáculo com a música, para
depois criar uma base para uma coreografia - é muito interessante para o músico
trabalhar desse jeito".
Quanto
ao Dança Comunidade, Benjamim afirma que "o
que esses jovens precisam é só de oportunidade. Se eles dançam assim, eles têm
capacidade de ser qualquer coisa".
* * *
Carmute Campello, socióloga e organizadora do livro Tenso equilíbrio na dança da sociedade,
disse que reuniu "pessoas de diferentes especialidades que falassem sobre
a relação da periferia com o trânsito social e a cultura". Carmute
ressalta que a obra conseguiu "ressaltar
o poder da cultura, que pode mudar mais do que se imagina". Para a
organizadora, tentar ouvir "qual é a voz da periferia", pela
investigação do "trânsito entre periferia e centro", resume o coração
do projeto Dança Comunidade, que atua "na cultura e no social". Por
isso, o resultado desta iniciativa "pode ser um piloto" de sucesso,
pois "aponta para uma série de condições" que podem levar a
melhorias, a novos projetos "mais complexos, mais interessantes".
Em
tempo, o livro traz dez artigos reflexivos sobre ações concretas de inclusão
social de jovens por meio da cultura e nas artes (como acontece no projeto
Dança Comunidade) e 50 fotos.
RICARDO ODEIA COMPUTADOR
O caricaturista brasileiro
Ricardo Soares, de tanto dizer que odeia computador, ganhou uma crônica: "Odeio
computador!". Depois da crônica, leia entrevista exclusiva com Ricardo, que fala de sua carreira e do mercado de ilustração no
Brasil.
A CRÔNICA
Odeio computador!
Cris Campos
- Cara, eu odeio
computador. Odeio!Como alguém de
olhos fechados que abre os sentidos bem devagar, ouvi aquela frase crua.
Desacelerei, para captar melhor a explosão. Categórico, Ricardo afirmou isso
diante do seu inimigo.A máquina
pareceu sentir o ódio. Magoada, recusava-se a lhe oferecer de boa vontade as
soluções para colorir um desenho enviado por uma amiga. Desenho entregue por
e-mail. Nem com esta ajuda do correio eletrônico, apiedou-se. O usuário olhava
feio para a estação de trabalho que deixa morar na sua casa.Meia hora de
briga. Até o mouse estava cansado. E nada. Enquanto isso, pude anotar o
suficiente na cabeça para esta introdução.De perto,
Ricardo sentado na grande mesa sobre estacas, diante do micro grafite. CPU com
cara de frente de carro, teclado moderno, ergonônimo. Preto e prateado
combinavam bem no aparelho maldito, que sugava os olhos do humano à sua frente,
de cabelo preto-e-branco por coincidência, ou convivência.Ele repetiu:-
Odeio computador. Agora, deu de travar. Olha
isso!Aquela frase de
ira parecia meio fora de foco a princípio, por isso agucei os seis sentidos.Rodopiei os
olhos pelo local e pude ver melhor. Ricardo na mesa grande do micro, ao lado do
fax, diante do quadro de cortiça, à esquerda do calendário de mesa.Realmente, quem
estava deslocado ali era o coitado do computador. Tudo o mais à sua volta
dialoga com a arte do desenho e da pintura feita à mão. Mais precisamente para
a arte da caricatura, que hoje exige mais do tempo de Ricardo.Até na hora do
jantar, os desenhos paralisam tudo, comandam o cenário.O computador
fica inibido, rodeado por potes e copos cheios de lápis, canetas,
"coisas" de desenhar, para desenhar, sobre desenhar. Pudera, é
máquina parida em escala no meio de um apartamento de artista. Isolado, sem
defesa, diante da forças das artes plásticas que assombram o 1.207. Liberdade é
o nome do bairro, mas não foi oferecida a ele.Imagine
humilhação que não deve ser ficar imobilizado, pregado sobre aquela mesa com
cara de utensílio de pintor. Tudo piora quando o destaque do cômodo é o
carrinho vermelho para desenho, a poucos centímetros. Projetado na Itália,
acomoda produtos para artes como um berço faz com um bebê. Abarrotado de
gavetas, andares, espaços para esboços, pincéis, lápis, bastões, réguas, papéis
especiais.Aquele artefato
parece uma Ferrari. Tem quatro rodas, design italiano e cor brilhante que te
obriga a fixar os olhos. E fica cheio de coisinhas interessantes, badulaques,
rabiscos, desenhos, obras acabadas. E nunca ouve desaforos, muito menos
palavras explícitas de ódio com ponto de exclamação no final.O pobre
computador, refém deste espaço, parece gritar quando se olha mais de perto:- Socorro!Mais à frente e
perto da grande janela, outra mesa mais imponente se instala. É uma prancheta,
uma "tábua ou mesa própria para desenhar", segundo o dicionário
Aurélio, página 1.614. Esta desfruta das luzes e da alegria daquela vista: São
Paulo de dentro do coração - Catedral da Sé à esquerda, grandes avenidas, muitas
luzes coloridas, helicópteros e aviões animados no céu, carros que vão e vêm,
com suas luzes vermelhas e brancas. De dia, outras cores aparecem, junto com
novos aviões e helicópteros, bailarinos no céu.Aquela janela
colorida é a maior amiga do Ricardo, na sua casa-estúdio. Porque ajuda na
produção dos desenhos sobre a prancheta. Naquela noite, à direita da caixa
vermelha de metal com os famosos lápis suíços Daran d'Ache, para aquarela,
repousava uma caricatura recém-aprovada do ator brasileiro Taumaturgo Ferreira.-
Feita à mão. É disso que eu gosto. E está
aprovadíssima!Disparou Ricardo
da frente do computador. Ele tentava ser solidário ao meu tour, mas seu ódio
pelo computador era maior.A janela
guardava a chuva e o frio do lado de fora. Também protegia mais e mais material
para desenho e pintura aos seus pés. Do lado oposto ao da prancheta, uma mesa
de luz e um cavalete para pintura, em local de destaque. Porque Ricardo tem
muitos quadros a óleo para pintar e, às vezes, uma ou outra caricatura gosta de
descansar ali.Quase ao final
da volta, uma estante aconchega livros, gibis (gíria para histórias em
quadrinhos). Uma escultura em barro terracota da cabeça do Ricardo com barba
debaixo de uma fita do Senhor do Bonfim equilibra aquele monte de papel. Livros
sobre os grandes mestres do desenho à mão livre, caricaturistas do mundo todo,
vários livros do Chico Caruso, o irmão "quase igual" do Paulo, que
também é artista do desenho. E tome quilos e quilos de livros sobre pintores,
bem de frente com o cavalete do pintor que mora naquele andar.Do outro lado da
estante, um guarda-roupas. À frente e já no limite da parede, uma cama de
casal, com edredon.Naquele canto,
mais afastado da poderosa janela, fica a mesa do computador. De dia ou de
noite, ele não sente as luzes de fora, nem os arco-íris, as cores que se
apressam na grande cidade. E nunca saberá desenhar sozinho, nem pintar, nem
resmungar, nem manusear coisas de artista, nem pensar nos próximos dois
desenhos da série Taumaturgo. Sem pensar nos outros projetos, nos salões de
humor, no calendário gigante do Paulo Caruso na parece, na outra prancheta
menor no corredor de entrada.O computador
dessa casa tem depressão. É máquina sedentária, mora na Liberdade e nunca sai,
está longe da janela e das cores da cidade e convive com Ricardo Soares - um
artista que desenha e pinta à mão - e sempre fala:-
Odeeeeeeeio computador!
São Paulo, 26 de maio de 2005
Ricardo Soares tem trinta e sete anos.
Desenha e pinta desde os doze.
Seu site é o
www.caricaturaaovivo.com.br.
Nasceu em 14 de novembro de 1967,
em São Caetano do Sul, na Grande São Paulo, Brasil.
Faz caricaturas em aquarela e é uma
das promessas da arte da ilustração no País.
Filho de João Ribeiro Soares e
Carmelita da Silva Ribeiro.
Tem presença em vários salões de
humor.
É colega e amigo dos ídolos de
antes.
Irmão de João Luiz, Rodrigo,
Tânia e Raquel.
Quer voltar a pintar telas a óleo
e diz que o mercado da ilustração no Brasil é muito difícil.
Mudou-se para o Piauí, estado de
seu pai, quando adolescente. Lá, encontrou o professor Ruiz, de geometria e
pintura.
Seu sotaque ainda lembra aquela
temporada.
Foi ao primeiro salão internacional
do humor, na capital piauiense, Teresina, onde conheceu Chico e Paulo Caruso e
outros nomes ilustres do desenho de humor, da caricatura tupiniquim.
Já trabalhava em agência de
publicidade, quando voltou para São Paulo.
Desta vez, suas malas carregaram
a paixão pela caricatura.
Desenha até no meio do pub,
rabisca guardanapo, esboça a caricatura de um, guarda foto de outro para
depois.
Vive no meio das cores, dos
desenhos, dos livros de arte, dos artistas do traço.
É um deles.
Seu apartamento-estúdio tem uma
grande janela, por onde entram luzes, cores e inspirações.
Gosta de sapatos, mas odeia
computador.
Desenha com as mãos. Resiste ao
mercado informatizado.
É filho das cores, herdeiro da
paleta infinita do universo.
Mas tem cabelo preto-e-branco. Ou
branco-e-preto?
Cris Campos - Como é participar da
Quarta Cultural, da Casa do Artista, quando você produz caricaturas em
aquarela ao vivo, com o material da Caran d'Ache?
Ricardo Soares - "Eu acho legal, é uma boa iniciativa da Casa
do Artista. É diferente. E acho que tem tudo a ver com a casa, que pode deixar
a casa muito mais animada. Como é uma das poucas casas da cidade, e talvez do
Brasil, que realmente vende os melhores materiais.
Tem tudo a ver esse tipo de ação
com artistas, de experimentar material, demonstrar material, fazer com que o
artista tenha o contato com o público. É importante.
Isso pode ter um lado comercial,
mas tem um lado social muito interessante, que é o contato do artista com o
público. Acho que a gente está numa época em que o artista não pode mais ser
enclausurado."
Cris Campos - Quando você começou a desenhar?
Ricardo Soares - "Na escola, como todo mundo. No primário.
Fazia cenas, desenhava hasteamento da bandeira, animais. Gostava muito de
desenho animado - Speedy Racer, Homem Aranha. Vários desenhos da época,
do "Globo Cor Especial" (programa da TV Globo)".
Cris Campos - Quando deu o insight para ser desenhista?
Ricardo Soares - "Na verdade, eu comecei a desenhar mais
intensamente quando eu entrei no ginásio.
Tive um professor espanhol que,
além de dar aulas de matemática, física, ele desenhava e pintava muito bem.
Professor Ruiz. Manoel Mariano Ruiz Vasquez.
Eu estudava num colégio de padre
e ele era professor lá. Não era padre. Um colégio de padres espanhóis, da Ordem
de Nossa Senhora das Mercês, da Espanha. No Piauí, em São Raimundo Nonato. Essa
ordem tem algumas sedes no Brasil, no Rio de Janeiro, no Piauí e na Bahia.
Colégio da ordem mercedária da Espanha."
Cris Campos - Porque isso te marcou?
Ricardo Soares - "Porque eu sempre fui muito apaixonado por
desenho e esse contato com o professor Ruiz foi muito importante, porque ele
foi o meu professor dentro da escola e eu tinha aulas particulares também com
ele. Ele dava aulas de geometria. A gente fazia figuras geométricas sólidas.
Ele dava como exercício essas coisas e pintura também.
E através dele, eu conheci a
pintura mais a fundo. E a partir desse colégio, eu comecei a pintar em tela, a
fazer pintura a óleo. Entrei nesse colégio com 15 anos."
Cris Campos - Como veio a profissionalização?
Ricardo Soares - "Eu nasci em São Paulo, em São Caetano do
Sul, em 14 de novembro de 1967. Com 13 anos, fui para o Piauí e fiquei lá 12
anos.
Eu morava no interior do Piauí,
nessa cidade (São Raimundo Nonato). O meu pai foi para lá porque lá ele tinha
condições de pagar um bom colégio; e esse era um bom colégio.
Depois, quando eu terminei o
ginásio e fiz o primeiro ano do segundo grau lá, fui para a capital, Teresina.
Eu fui para o Colégio Agrícola,
de Técnicas Agropecuárias, através da Universidade Federal do Piauí. Eu fiz o
primeiro ano e saí. Acabei abandonando o curso, que não tinha nada a ver
comigo. Aos dezenove anos.
Mas aí eu comecei a conhecer
pessoas que trabalhavam na área, e aí eu fui trabalhar numa agência (de
publicidade). Fui indicado para uma agência, fui lá e mostrei o trabalho.
Eu fazia logotipo, fazia
arte-final. Fazia um trabalho que ninguém mais faz hoje, com o advento da
informática, que é pastup - colava letra por letra, montava texto. Ninguém hoje
precisa fazer mais isso. E ilustrava também, fazia ilustração dentro das
agências. Tive contato com artistas muito bons."
Cris Campos - Mas quando você descobriu a caricatura?
Ricardo Soares - "Ali em Teresina, eu conheci o Salão do
Humor, que é o Salão Internacinal do Piauí, um dos melhores salões do mundo. Eu
comecei a ter contato com os trabalhos de caricatura, desenho de humor. Eu me
apaixonei.
O primeiro salão que eu vi foi em
1987. Eu nem imaginava que existisse um salão daquele no Piauí. Não
discriminando o Piauí, mas eu fiquei surpreso porque o nível do salão e os
convidados de renome que iam lá. Era Luís Fernando Veríssimo, Paulo Caruso, Chico
Caruso, Angeli, Laerte. Eu cheguei a ver tudo isso de uma vez só."
Cris Campos - Foi uma amostra daquilo que seria o seu futuro? Naquela
época, você pensava que se tornaria amigo e colega, por exemplo, do Paulo
Caruso?
Ricardo Soares - "Pois é. Nem imaginava. E quando eu conheci o
salão do Piauí, não conhecia nenhum artista da cidade. Eu ainda estava no
Colégio Agrícola."
Cris Campos - E quando você veio para São Paulo?
Ricardo Soares - "Depois de trabalhar algum tempo lá em
agência. Vim com a cara e a coragem. Sozinho. Quando o trabalho começou a ficar
muito escasso em Teresina, eu vi que era a hora de ir embora e buscar novos
horizontes. Eu sabia que as maiores editoras estavam aqui, os jornais, as
revista, as agências. O mercado de São Paulo é muito melhor.
Tinha que ter vindo mesmo. Não
tinha outra saída.
Foi difícil. O começo foi muito
difícil. Morando em pensão, passando necessidade. Eu fui trabalhar num estúdio
e com o advento da computação, levei um pé-na-bunda do estúdio e não fui
aproveitado."
Cris Campos - Hoje, em quê fase da carreira você está?
Ricardo Soares - "Eu acho que estou numa fase boa. O meu
desenho evoluiu, apesar da estagnação do mercado. Eu acho que o mercado de
ilustrações está um pouco ruim. As editoras pagam cada vez menos.
Com o computador, todo mundo se
tornou ilustrador. Qualquer pessoa pode ser ilustrador hoje em dia, tendo um
Macintosch e as editoras aceitam isso.
Mas eu me sinto bem com o meu
desenho, acho que ele evoluiu apesar de tudo, apesar de todas as dificuldades.
Tenho atuado muito em eventos.
Tem sido uma saída para manter a casa, para manter o ganho, pagar as despesas.
Essa tem sido a luta. Mas eu acho que o artista tem que deixar um registro,
fazer quadrinhos, fazer ilustração. E o mercado não está apreciando muito
isso."
Cris Campos - O que falta?
Ricardo Soares - "Eu acho que tem um certo mercado sim. Mas
para quem não está trabalhando com computador, está se tornando um pouco mais
restrito. O que é uma pena, porque nos Estados Unidos e Europa, isso não é uma
regra. No Brasil, se tornou uma regra: ou você abraça a informática para
trabalhar com ilustração, ou você está fora do mercado. E é uma pena, porque a
mentalidade na Europa e nos Estados Unidos é outra.
Eu acho que se você é um bom
desenhistas, é um bom ilustrador, não importa a técnica com a qual você
trabalha.
No Brasil, se tornou uma
imposição. Porque a maioria os editores de arte acham que você tem que
trabalhar com o computador. São eles que acham; não o ilustrador. Eles têm
pressa em ganhar dinheiro e, quanto mais ilustrador usando computador, menos
eles pagam, porque eles acham que é tudo mais rápido e mais fácil. Quem dita as
regras do mercado da ilustração não é o ilustrador, são os editores de
arte."
Cris Campos - E o que você quer fazer? Qual o teu sonho?
Ricardo Soares - "Eu quero continuar desenhando, melhorando
cada vez mais o meu desenho, quero fazer caricaturas pra salão e gostaria muito
de fazer quadrinho. Mas eu não gostaria de fazer quadrinhos no Brasil, porque
eu não acredito no artista que vive de brisa, no artista que vive de idealismo.
Não que eu seja alguém que só
pensa em dinheiro. Eu acho que o desenho, a arte tem que ser encarado como uma
profissão qualquer. Você depende dessa profissão. Você precisa viver bem
através da profissão, você precisa comer bem, se vestir, comprar material de
qualidade e adquirir cultura através de livros, assistir peças de teatro, ver
cinema de qualidade. O artista precisa disso. E o artista que não ganha bem,
ele não pode fazer nada disso, nem ter paz de espírito pra criar."
Cris Campos - E o que os especialistas que hoje te conhecem, como o
Paulo Caruso, falam do seu trabalho?
Ricardo Soares - "O Paulo gosta do meu trabalho. O Paulo acha
que eu evoluí muito. Eu acho que tem o seu lado bom, mas não me acho também um
fã babaca que vê o ídolo como o extremo. Eu acho que ele passou por fazes e
adquiriu esse renome porque trabalhou muito. Eu estou traçando o meu caminho
também, trabalhando muito e evoluindo no meu desenho. O Paulo é uma referência,
assim como outros artistas foram referência para ele."
Cris Campos - Quem mais é referência para você?
Ricardo Soares - "Eu acho que alguns desenhistas europeus são
referências. Eu gosto muito do caricaturista Sebastian Krüger, que é alemão e
está fazendo um trabalho fantástico pintando as caricaturas dele em acrílico.
Gosto muito do All Hirschfeld,
que morreu já e era americano, como o Will Eisner. Gosto muito do Milo Manara,
que é italiano, o Eleuteri Serpieri. E outros que fazem trabalho já numa outra
linha, como o Dave Mckean, que é inglês, fez muitas capas do Sand Man.
Meu gosto é variado, porque se
você comparar o trabalho do Hirschfeld com o Dave Mckean, são diametralmente
opostos. O Hirschfeld era o mestre da caricatura, o mestre do traço preto, da
caricatura - tanto que ele ficou
conhecido como o King of line, o Rei
do traço. E o Dave Mckean fazia um trabalho totalmente existencialista,
totalmente diferente, pintado, não é traço.
No Brasil, acho que temos grandes
mestres da caricatura: o Paulo, o Chico (Caruso), o Cárcamo, Baptistão do
Estado de S. Paulo, Pavaneli, Dino Alves. E na ilustração, eu tive o prazer de
conhecer o Jayme Leão, que fez as melhores capas de livros didáticos que eu já
vi, as melhores ilustrações para paradidáticos. O Benício também."
Cris Campos, Bons Ventos - E você pretende dar aula?
Ricardo Soares - "Acho que é um objetivo futuro sim, acho que
é legal. Pode ser interessante passar a experiência para outras pessoas, no
futuro."
Cris Campos - É possível ensinar qualquer criança a desenhar?
Ricardo Soares - "Eu acho que é possível, mas a nossa
sociedade educa as pessoas a ganhar dinheiro apenas. E a gente ainda vive muito
influenciado pela idéia de que você tem que ser um doutor para adquirir
respeito na sociedade. Existe essa idéia muito forte ainda.
E parece uma coisa colonial, do
filho do senhor que vai para a Europa e volta com um diploma e, quando volta, é
respeitado por todo mundo. E ele é respeitado por causa daquele diploma, por
causa daquela posição social que ele adquire.
E o Brasil tem essa coisa que eu
acho absurda: se você é artista, você não é respeitado como deveria. Na Europa,
se você é um artista, você é respeitado.
Um professor meu, que era padre,
me falou uma coisa muito interessante uma vez - padre Cassimiro, professor de
filosofia na universidade católica, na PUC (Pontifícia Universidade Católica)
de Salvador -: 'no Brasil, você adquire respeito quando adquire um diploma de
médico, por exemplo, ou quando se torna padre; enquando na Europa, você adquire
respeito quando se torna artista'. É totalmente diferente, é outra
mentalidade."
Cris Campos - Por isso que você fala em
ir para a Europa?
Ricardo Soares - "Eu gostaria de ter essa experiência sim. Sei
que não é fácil. Acho que o artista na Europa ainda é mais bem remunerado que
no Brasil."
Cris Campos - E o que falta?
Ricardo Soares - "Acho que o ponta-pé inicial seria ter
dinheiro para chegar lá. Apesar do meu objetivo ser ganhar dinheiro com o meu
trabalho, seria chegar lá também um pouco amparado financeiramente. Aqui está
difícil."
* * *
Nota: Entrevista concedida em 19 de maio de 2005, no Café Creme, da Avenida
Paulista, em São Paulo. Logo depois de visita à Casa do Artista. Noite bonita,
um pouco fria, regada a cerveja, porção de frango grelhado com torradas e
catupiri e um simpático vendedor de pequenos bonecos de pano.
O menino que pega avião no céu e a menina de pés e mãos que voam
Crônica sobre o espetáculo "Aviões & Arranha-Céus - Um
Monólogo Manipulado", criado por Ricky
Seabra e Andrea Jabor em 2002 e
apresentado em Portugal e no Brasil.
A obra encerrou três
dias da programação "Habitar a Imagem" do Itaú Cultural, de São
Paulo, em 23 de julho - dentro da grade da exposição Cinético_Digital. De 06 a 10 de novembro de
2005, "Aviões" serão apresentados ao vivo em Paris, na Menagerie de
Verre.
Parte 1: Crianças que fazem arte
Quando o menino Ricky viu um
avião pela primeira vez, tentou segurar o aeroplano com a mão direita e quase
conseguiu. Naquele instante, a turbina do seu coração rugiu no giro máximo e a
alma de artista da criança de Washington alçou o primeiro vôo.
No Brasil, a menina Andrea
imitava a bailarina do filme que assistia. Seus pés quase acompanharam os
movimentos, mas não saíram do chão. A dança fisgara seu coração naquele exato
momento. Mas foi quanto suas mãos tocaram o monitor de tevê, que ela soube que
as sapatilhas a fariam voar.
Se não ocorreu exatamente assim,
não importa. Fato é que, cerca de vinte anos depois, Ricky Seabra encontrou
Andrea Jabor. E foi depois da semeadura de arte que o Universo fizera nos dois.
A germinação precisou de muitas
viagens e estudos, aperfeiçoamento, apuração do olhar, coreografias e carinho
com o sonho de fazer arte e de nunca parar de brincar como criança. Até que
chegou o tempo da colheita. Isso aconteceu por volta de 1995, quando começaram
a criar juntos. Ele, um designer e performer; ela, bailarina, coreógrafa e
diretora.
Dez anos mais de trabalho e
criação, chegou a maturidade artística que o Universo reservara de presente
àquelas duas crianças. A recompensa por não se deter um avião com as mãos, ou
fazer os pés com sapatilhas decolarem: a iluminação de habitar imagens, criar
espetáculos multimidia-transartísticos, onde a arte e a história de vida de
cada um conversam ao pé-de-ouvido com o público.
Numa platéia lotada de 270
lugares, ora um menino, ora uma menina falaram baixinho ao meu ouvido. O menino
Ricky e a menina Andrea fizeram, naquele palco, arte. Arte de primeira
grandeza, gerada das mãos do artista - manufaturada, manutenida, manipulada.
Assim, eles viraram luz e, como partícula-onda, revisitaram imagens, memórias,
a si mesmos, a gente. Habitaram imagens no espetáculo e na minha cabeça. Hoje,
habitam em mim também.
Ricky segurou um avião por algum
tempo, na imagem da tela grande. Também entrou pelos corredores de um
escritório do World Trade Center e mostrou como olhava as torres gêmeas deitado
no chão e lá do alto, no Observatório. Ele continua com os olhos no céu.
No monólogo interpretado por
Ricky, a dinâmica da direção de Andrea dá sabor de dança ao espetáculo.
Porque as mãos que concentram a
queda das torres, após o beijo dos jumbos naquele 11 de setembro; e que contam
a história do pôr-da-lua duplo, durante um vôo noturno de avião; são as mãos de
Ricky, dirigidas e encenadas pelas mãos de Andrea.
Porque as memórias de aviões e
arranha-céus hoje são mais tristes do que quando ambos eram crianças e
brincavam de pegar avião e de dançar com mão e pés fora do chão.
Foi o que senti, depois de
assistir ao espetáculo "Aviões & Arranha-Céus - Um Monólogo
Manipulado", criado por Ricky e Andrea em 2002 e apresentado no sábado à
noite, em 23 de julho de 2005, no Itaú Cultural, em São Paulo, Brasil.
Parte 2: O espetáculo
Chegamos em três. Eu, minha prima
Miriam e o filho dela, Thiago, de 16 anos. Assistir ao espetáculo "Aviões
& Arranha-Céus - Um Monólogo Manipulado", no Itaú Cultural, era o
programa daquela noite de sábado. Fomos caminhando, pois a avenida Paulista é
perto de casa. Primeira visita deles a São Paulo. Estréia de todos nós, perante
a arte de Ricky Seabra e Andrea Jabor.
Em cima da hora, pegamos os três
ingressos gratuitos na bilheteria, com alívio de não perder a chance de
saborear arte. Na Sala Itaú Cultural, o grande teatro do prédio, sentamo-nos
nas extremidades da direita, na duas primeiras filas. Quase não havia mais
lugar vago.
Tudo pronto. Celulares
desligados, corpos acomodados. Corações e mentes abertos. Olhos curiosos.
Telona branca, uma mesa de
trabalho no palco, como as dos estúdios de criação de qualquer artista - cola,
caneta, papel, fios, recortes, um pouco de tudo. Papéis espalhados no chão, com
margem queimada, moldura de fogo. E um homem. É o próprio Ricky Seabra.
Aplausos para ativar a atenção do Olimpo e voilá.
Pensamento
número um:
-
Estou
diante de um "animador de imagens", uma espécie de controlador de marionetes
virtuais. Faltam bonecos. Como seriam? Alienígenas?
Debaixo do foco de uma lente de
filmadora digital, presa a um braço de ampliador, a história de "Aviões
& Arranha-Céus" começa a ser contada por duas palmas de mãos, com
desenhos de aviões no seu centro. O zoom
in evidencia as dobras e as figuras de carvão das aeronaves na pela humana.
Máquina de pele-pintada. Pele de fuselagem.
Zoom out e se evidencia que as mãos em questão são de um homem.
"Se é que artista tem sexo em
cena."
E voltam as palmas e os
aviõezinhos. Ambas lembram, numa coreografia triste, como caíram as duas torres
do World Trade Center, de Nova Iorque, no atentado terrorista de 11 de setembro
de 2001. A segunda, inconformada, quase grita seu último urro primal, para
terminar como começou.
Nas mãos do artista, a narrativa
chega perto do público pela força de ampliação da imagem da tela grande. A mesa
de trabalho, peça de cena, vira tela mental, nosso cinema. E imagens (de
miniaturas de aviões, fotos e gravuras) entram e saem de foco, sobre as folhas
que seguram as mãos de Ricky. Aviões e arranha-céus. Manuseia na sua frente o
que o público vê, em tamanho gigante, no fundo do palco e atrás do artista.
A performance de Ricky tem um
leve sotaque. Talvez por ser filho de americano e bisneto de português.
Pensamento
número dois:
-
Parece
carioca. Ou português? Tem um esse arrastado, cantado.
O texto do "monólogo"
prossegue. O narrador tenta voltar no tempo, no exato momento em que a imagem
de um objeto voador denominado avião era referência de "invenção genial,
símbolo da modernidade e da rapidez de transporte na Terra". Se congelado,
este momento também daria significados aos arranha-céus mais antigos:
"maravilhas da engenharia, o máximo do trabalho de equipe".
Símbolos positivos, em
significante e significado. Ícones de poder e de superação da condição humana e
Mortal.
O artista pergunta:
-
Onde começaram os atentados de 11 de setembro,
que mudaram as imagens, o imaginário sobre aviões e arranha-céus?
As respostas possíveis trazem ao
discurso do espetáculo uma pausa dramática, de making of. De repente, Ricky fecha um grande livro. Minha paixão pela Literatura agradeceu.
Tela lacrada no palco. Vazia. E volta a mão, fragmentada em alguns dedos no
foco. Bate os dedos sobre a capa dura, como quem pára para refletir.
A sonoplastia confirma: ele
descarta uma possibilidade de resposta com um monossílabo de negação:
- Hã, hã.
Vira a página da História, abre o
livro novamente e narra outra possibilidade de achar o fio da meada.
A origem da "nova
imagem" que domina as mentes terrestres, sobre aviões e arranha-céus, é
investigada por uma, duas, três alternativas de respostas à questão da causa
dos atentados.
Pensamento
número três:
-
Onde
estaria o primeiro insight de se imaginar um avião como um "Molotov"
gigante, que poderia ser arremessado contra um arranha-céu? O primeiro filho da
puta que pensou isso não poderia ter sido fulminado com um raio de fúria do
Criador do Universo? O que será desta nossa espécie medíocre?
Ao final de cada relato, que
mescla dados concretos - como o atentado terrorista anterior contra as torres
gêmeas - e imagens do filme "Inferno na torre", com Paul Newmann -
Ricky fecha o livro.
O performer manuseia, no palco de
"Sobre Aviões & Arranha-Céus", todas as artes - dança, música,
literatura, cinema, teatro, música, desenho. E conta história ao vivo como se
dançasse uma coreografia. Mão de Andrea Jabor, diretora do
"monólogo", bailarina e coreógrafa.
Voltam as imagens de ficção e de
realidade. Telona congela naquele corpo deitado de mulher. Foto em preto e
branco. Olhos fechados. Corpo cheio de ondas. Os olhos querem enganar o
coração. Parece uma bailarina, uma modelo em pose difícil. Até que Ricky entra
na imagem cerebral dentro da gente e diz, com todas as letras, que ela
matou-se, ao pular de um arranha-céu, na década de trinta, em Nova Iorque, por
desilusão amorosa. Caiu sobre um carro.
Pensamento
número quatro:
- Para
sair da Terra, fez parte do prédio alto por alguns instantes. Voou pela
primeira e derradeira vez. Entrou para a história e destruiu o que pôde, na sua
queda-livre: um automóvel. Pele de pele. Aço de aço.
Novas imagens de arranha-céus. E
idéia-de-girico de fazer o Zepelim pousar no topo do mais alto prédio da Grande Maçã, nas mãos de Ricky, arrancam
gargalhadas da platéia. O recorte da imagem de um prédio e o zepelim arisco a
vento, que parece voar de ré, aliviam um pouco a densidade do espetáculo.
Lembram os teatros de bonecos, o circo, as brincadeiras lúdicas, as aulas mais
inspiradas na escola, Vila Sésamo, Glub-Glub.
E vêm os bonecos. Bush, Saddam,
Osama. Com uniformes militares camuflados. Brigam nas mãos de Ricky. Todos
apanham. Por manipular a imagem de aviões e arranha-céus para seus fins. Por
fazer-nos de bonecos reais. Diferente do jeito que se segurava um Falcon, ou
uma Barbie, ou Emília, as mãos de adulto do menino de Washington, naquele
palco, mostram raiva. Castigam os bonecos sem dó, na medida adequada para
aquele contexto. Não eram bonecos Vudu,
infelizmente.
No meio do espetáculo, lembrei-me
da imagem deletada, depois do filme pronto, em que a teia do Homem-Aranha
prende um helicóptero entre as torres do WTC. Como se o Deus Chronos tivesse
que mandar um grande STOP! à gana(ânsia) do homem, ou à simples mania de fazer
planos, cálculos e projetos para o futuro. Justo o tempo que nunca pertencerá
aos terrestres.
E mais imagens e trilhas sonoras
novas mantêm-nos em velocidade de cruzeiro e vôo alto durante o espetáculo. As
imagens das cidades futuristas e fantásticas de "Blade Runner" e
"O Quinto Elemento" aguçam nossa memória. Enquanto elas brilham a
telona, a mente é animada por um grande baile de neurônios vizinhos, com suas
sinapses ousadas, que remetem ao bebê de "2001- Uma odisséia no
espaço", à teoria de que o centro do Universo está dentro de cada ser vivo
- frase lembrada pelo golfinho falante do seriado "Sea Quest", do Steven Spielberg.
Pensamento
número cinco:
-
Hollywood reinventa a realidade com suas "imagens virtuais", de
ficção. E as "imagens reais" tentam superar a arte, no bombardeio que
recebemos pelo canal mais comum: a CNN. Aquele Live ("Ao vivo" no Brasil e "Directo" em
Portugal) no canto da tela da tevê era a coisa mais surrealista que Salvador
Dali poderia imaginar: o real. Afinal de contas, quem se alimenta de quem - a
imagem real, ou a virtual? Quem é inspiração para quem? Onde está nossa imagem
real?
Ricky Seabra mistura também
trechos de sua história de vida e de ficção à narrativa do espetáculo que
idealizou junto com Andrea Jabor. Conta de sua paixão por aviões, dos desenhos
que fazia de grandes prédios, que nasceriam acima dos arranha-céus e que
batizara de "Colossus". Relata como foi a sua primeira visita ao
World Trade Center, nos primeiros dias como morador da cidade de Nova Iorque,
para onde fora estudar arte. Relata como era, no observatório do 107º andar:
-
Encostar os pés e o nariz no vidro e olhar para
baixo. A ponto do Brooklin era deste tamanho (e mostra poucos centímetros com o
polegar e o indicador de uma das mãos). O aço dentro da mão. A mão que comporta
tudo, de cima. O "Dedo de Deus", numa esfera mais humana.
Quando arrasta a sua cadeira pelo
palco e entra na imagem interna de um escritório do WTC. Desvia das filas de
mesas de trabalho e chega à janela. Dança sentado, como se voltasse no tempo.
Mistura realidade e ficção. Vira imagem no palco e dá vida à gravação caseira,
feita há muito tempo, quando incorpora a sua sombra à imagem na tela.
"Habita a imagem", como requereu o espetáculo, na concepção que
desenvolveu junto com Andrea Jabor.
"Aviões &
Arranha-Céus" termina. Repara-se no equipamento preso à cabeça de Ricky. E
ele volta a ser um artista multimidia, no palco, que foi um menino que gostava
de aviões e arranha-céus e que sente saudades do tempo em que aviões e
arranha-céus tinham uma imagem mais simples, mais alegre. E isso era real.
Hoje, essa imagem é ficção,
sobretudo para quem tem até quatro anos de vida. Mas pode ser habitada pela
arte. Sem a arte, esta referência boa, resgatável, estaria perdida no
tempo-espaço, no não-lugar, ou presa no ciberespaço.
Para quem esteve na apresentação
de "Aviões & Arranha-Céus" em São Paulo, Lisboa, ou estará em
Paris, significados quase esquecidos são novamente introjetados.
Porque imagens de "Aviões
& Arranha-Céus" passam a habitar em nós.
Não por acaso, levamos para casa
duas páginas das folhas que compuseram o cenário. Em uma delas, a letra de
Ricky Seabra e fragmentos do poema "For a moment: tenderness", que é
declamado no espetáculo.
***
Ficha técnica
"Aviões & Arranha-Céus,
Um Monólogo Manipulado"
Criação: Ricky Seabra &
Andrea Jabor
Idéia original, texto e
performance: Ricky Seabra
Direção e encenação: Andrea Jabor
Desenho de luz e técnica: An de
Hondt
Produção: Kunstencentrum nOna,
Mechelen, Bélgica
Montagem de vídeos: Guido Van
Troost
Montagem de trilha: Ricky Seabra
Sonoplastia: Marc Nukoop &
Atilla Nemeth
Operação de luz e coordenação
técnica: José Geraldo Furtado
Produção executiva: Fomenta -
João Braune
Direção e produção: Ricky Seabra
& Andrea Jabor
Duração: 70 minutos
Agradecimento: Academia do corpo
de Bombeiros da Província de Antuérpia
Animação em computador:
generosamente realizada pela Medialab/Atos Origin Engineering Services B. V.,
Holanda
Dedicação: a Sander Waring Harden
(1997-2003)
Site de Ricky Seabra: http://www.rickyseabra.com
Site de Andrea Jabor: http://www.andreajabor.com.br
O
site de "Aviões": http://www.rickyseabra.com/avioesearranhaceus.html
Projeto MÚSICA PARA OS OLHOS promete
agitar produção cultural brasileira em 2006
A produtora cultural MônicaHernandes conta como esta iniciativa integrará artes plásticas, música
instrumental, vídeo arte, intervenções urbanas com a história dos carroceiros e
catadores de lixo das metrópoles. MÚSICA PARA OS OLHOS será uma explosão de
arte visual, que deve percorrer nove estados brasileiros em 2006.
Mônica Hernandes é produtora
cultural, curadora de arte, marchand e coordenadora de exposições como
"Música e Cor", que exibiu os quadros do artista plástico Farago em 2005,
no Cultural Blue Life, em São Paulo, Brasil. A primeira mostra individual
estimulou a veia criativa de Farago e Mônica. Eles continuam juntos no projeto
MÚSICA PARA OS OLHOS que, em 2006, deve percorrer nove estados brasileiros com
uma interessante proposta de arte visual. A idéia é integrar artes plásticas
(com uma mostra de cerca de 25 quadros), música instrumental (CD de jazz e
blues) e vídeoarte com intervenções urbanas realizadas por artistas,
carroceiros e catadores de lixo. Mônica Hernandes inspirou dois textos da
colunista Cris Campos, do Brasil: a crônica "Casa Azul" e uma
entrevista exclusiva, que você acompanha nos links abaixo:
CRÔNICA
Casa azul
Onde a grande avenida vira a
esquina e finge ser uma pequena rua, ela se instalou. Os sobrados fazem fila,
como no Pelourinho de Salvador. Mas são tímidos, pastéis. O número 617 não;
talvez pense que é baiano. Todo lindo. É de um azul escuro tão profundo que
chega a dar saudade de tudo que é bom e que passou, passa ou passará nesta
vida.
Da porta na varandinha, ela abre
o sorriso. Camisa vermelha, decotão, brincos de cristal rosa cheios de luz.
Cabelos cacheados caídos aos pés da gravidade. Colo farto de mãe - do Bruno, um
"artistinha" de quatro anos. Filho de Wilson, pai músico e de Mônica. Morena e Mãe de mais
gente. E de todas as cores das sete faixas do véu de Íris.
O Sol que reflete na casa Mágica. Lá do céu, ele sabe que debaixo
das telhas tá cheio de quadros, encostados nas paredes, no chão, no ar.
Por enquanto, são doze artistas
que Mônica acomoda no coração e sob
os olhos castanhos. Debaixo das suas asas, só não entra quem é bobo. Ou tem
medo de fazer arte. Ou não sabe sorrir alto, escancarado, com a roupa tingida
de tinta. Ou pensa que a arte não é humana, não está para esta subdesenvolvida
vida. Tem que esconder. Quando "arte é para ser vista", diz Mônica.
Ela sabe, desde pequena, que arte
é vida. Porque Mônica Hernandes é Marchand,
assessora de artistas, curadora de arte, criadora de casos, fomentadora de
estórias.
Uma arteira artista, babá de
artistas no Brasil, que dá tchau do sobrado azul da rua que quebra à direita.
Aquela ruazinha que faz reverência ao grande parque verde que lhe emprestou o
nome: Ibirapuera.
No meio de São Paulo, encontrar
Mônica é como mergulhar num quadro colorido, tropical, caliente. E achar, no
embaçado expressionismo poluído da realidade, uma flor brasileira da metrópole.
Nítida. Clara. Simples. Mônica Hernandes.
ENTREVISTA
Menina arteira
Com voz bonita e cercada por
quadros e objetos de arte, Mônica Hernandes sentou-se na mesa, de frente para
uma janela escancarada ao céu de outono. Azul. Só azul. Acomodada nesta
moldura, como uma Maddona de verdade, ela contou a história da primeira
exposição de Farago e falou, com exclusividade pra o Bons Ventos, sobre um
projeto maior, MÚSICA PARA OS OLHOS, que florescerá em 2006. Assim:
Mônica Hernandes - "MÚSICA E COR foi a primeira exposição
individual do Farago. Nós temos um projeto, para o ano de 2006, que se chama MÚSICA PARA OS OLHOS, que é exatamente
retratar, através do trabalho do Farago, interagir com a música e com a própria
composição visual.
Itinerante. Ele já está
preparando. Na verdade, essa Música e
Cor foi uma premier do que vai
ser o projeto todo. E a gente quer colocar em nove estados. Então, seria São
Paulo, Paraná (Curitiba), Minas Gerais (Belo Horizonte), Distrito Federal
(Brasília), Rio de Janeiro, Santa Catarina. E tem um CD.
Música
para os olhos está muito voltado para o jazz. Jazz e blues. E até para
dismistificar um pouco, no Brasil, a coisa da música instrumental também. E aí
tem um CD de jazz e mais toda exposição, que tem em torno de vinte e cinco obras.
O blues é uma delícia e as
pessoas têm uma certa reticência. Essa é a idéia. E está linda a exposição. Tem
camisetas, brindes promocionais. Vai ter todo um trabalho de assessoria de
imprensa para tudo isso. Então, eu acho que são os dois trabalhos principais do
Farago mesmo.
Quando eu era coordenadora
cultural, o Farago veio e disse:
-
Preciso te apresentar um projeto que eu tenho.
Eu falava:
-
Puxa vida, ele fala e não me apresenta.
Até que um dia, eu disse:
-
Farago, eu preciso saber, para eu poder encaminhar
a sua carreira, eu preciso saber.
Ele falou:
-
Eu tenho dúvidas da minha linha de trabalho.
Eu falei:
- Então, vamos lá.
E marcamos uma reunião. Quando
ele me mostrou, eu virei e falei:
-
Essa é a sua linha de trabalho. Você vai crescer
muito, por estes traços gestuais mesmo. Ele é mais solto.
E eu falei:
-
Pega a música e vai desenvolvendo o projeto.
Então, eu peguei um filho.
No dia da exposição, ele estava
muito feliz.
(Nota: o vernissage da primeira exposição do
Farago aconteceu na noite de 04 de maio de 2005, no Cultural Blue Life, de São
Paulo, Brasil.)
Inclusive essa já é uma segunda
fase do trabalho, em que eu vejo o crescimento dele. Muito mais solto. Então,
as pessoas que acompanharam lá atrás, vieram conversar comigo:
-
Mônica, que amadurecimento de trabalho!
Isso é muito legal. Porque aí
você vai vendo o artista amadurecendo mesmo. Porque isso eu já tinha visto lá
atrás. Eu falei:
-
Farago, daqui um tempo você vai estar muito mais
solto, a proposta vai estar redonda.
E eu já senti isso. Para mim, naquele
dia estava nascendo um filho. E as pessoas percebendo já uma evolução de
trabalho.
Ele está muito maduro, por ser um
artista jovem, é a primeira exposição individual, mas ele tem projetos muito
bacanas.
E vai ter um outro, que a gente
vai realizar que é uma intervenção urbana e o Farago vai estrar trabalhando a
parte de artes plásticas. É um projeto já mais arrojado, em que ele vai estar
se mostrando mesmo para a cidade. Mais contemporânea a proposta. Tem um cunho
social, que é com os carroeiros, os catadores de lixo. Então, essa proposta vai
estar muito bacana também."
(Nota: O curta-metragem
brasileiro Zagati conta a história de um catador de papel de São Paulo,
José Luiz Zagati, que sobreviveu décadas da sucata, do papel, do papelão e de
filmes de cinema que resgatou do abandono no lixo. Não por acaso, um dos
diretores do filme, Nereu Cerdeira, participará do projeto MÚSICA PARA OS
OLHOS.)
E aí, então, a exposição
aconteceu lá no Blue Life, no andar superior. E a gente vai trabalhando, para
que as empresas também conheçam o trabalho dos artistas, principalmente do
Farago que tem esta proposta. Estamos na fase de captação de patrocínio,
justamente para este projeto MÚSICA PARA
OS OLHOS acontecer em 2006."
São Paulo, Junho de
2005