Monday, June 16, 2014

Milágrimas, uma fusão cultural de Brasil e África do Sul

Milágrimas celebra a interação cultural e artística entre o Brasil e a África do Sul de várias maneiras: pela fusão musical de duas culturas no CD com trilha sonora exclusiva; no palco, pela coreografia criada a partir da música e do canto popular; no livro Tenso equilíbrio na dança da sociedade, que fala de inclusão social de jovens por meio da cultura e da arte. Porque canta a letra de Alice Ruiz para a música de Itamar Assumpção: "a cada mil lágrimas, sai um milagre". Neste caso, o milagre que faz brotar lágrimas de alegria no público é a inclusão social dos 41 jovens da periferia paulistana que, no palco, viram gigantes da dança, das artes. Bertazzo tem uma Broadway e uma Sapucaí dentro de si. E este corpo de baile carrega um Bolshoi n'alma. São mágicos juntos: com três degraus e um enorme tecido fazem um oceano, para unir mais Brasil e África. Nova temporada, novo milagre. Bravíssimo!
Cris Campos

Participamos da coletiva de estreia nacional de Milágrimas, segundo espetáculo do projeto Dança Comunidade, que uniu o coreógrafo Ivaldo Bertazzo e o SESC São Paulo. Mas Milágrimas vai além do palco, transborda. Gerou o CD com a trilha sonora do show - 11 pérolas, com participações brilhantes de músicos brasileiros e sul-africanos. E inspirou o livro Tenso equilíbrio na dança da sociedade, com artigos e fotos. O espetáculo que deu nome ao CD é prova viva do sucesso de iniciativas de educação, cultura e arte que resgatam jovens do abandono social e multiplicam seus talentos. Muito trabalho que dá resultado: Milágrimas está pronto para ganhar o mundo. Porque "a cada mil lágrimas sai um milagre".
Milágrimas é um poderoso encontro de artistas dos dois lados do Atlântico: do Brasil e da África do Sul. Nasceu da pesquisa de Ivaldo Bertazzo sobre as duas culturas. Revelada a "ponte" quando se descobriu a Isicathamiya, manifestação cultural sul-africana que une passos de dança com um delicado canto popular, a capela ou coro, criado pelos mineiros de ouro de Johanesburgo. Os músicos do grupo Kholwa Brothers vieram ao Brasil tocar com brasileiros pela primeira vez. Foi tudo natural, desde o primeiro acorde que acabou com as barreiras da língua. A língua universal da música calou as diferenças.
E veio a dança, enriquecida com os coreógrafos convidados. O palco foi cercado por três degraus de madeira. Virou trono. Recebe os movimentos do samba e das danças africanas, oriente e ocidente do mesmo oceano. Acalenta o canto da trilha e dos dançarinos-cantores, que veio dos mineiros do ouro, mas também guarda em si as vozes de Serra Pelada e as lavadeiras nos riachos e as romarias do Nordeste. E as máscaras que remetem ao carnaval e aos rituais dos nobres guerreiros africanos. Fato é que o resultado foi além. Porque até os dançarinos do Dança Comunidade cantam, em duas faixas da trilha. Tudo redondinho.
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Falas dos criadores de Milágrimas

Durante a entrevista coletiva de lançamento nacional do espetáculo Milágrimas, os seus criadores falaram do making of do projeto, que ainda inclui trilha sonora exclusiva e livro com dez artigos de diferentes especialistas. Sobre a primeira fase do Projeto Dança Comunidade, que cria nova metodologia de inclusão de jovens por meio da cultura e de atividades multidisciplinares, destacamos a seguinte síntese:
"Não é uma viagem de turismo. Ele (o jovem) passa por um período de trabalho, de organização e aprende como é trabalhar em equipe. Isso o fortalece e o coloca dentro de uma inclusão. Por que não falar duas línguas? Para estrategicamente transitar entre dois mundos. Estamos ensinando um público de elite a observar esses corpos. É um touro indomável, que tem a tipologia brasileira de um corpo misto. É diariamente uma nova construção. Porque o gestual pode transformar o ensino do movimento para o jovem. Ele estuda primeiro a música, a sonoridade. O Carlinhos Brown, a escola Pracatum e no Candeal, faz isso. É um trabalho para a construção de um corpo no espaço e para o raciocínio... com o pé firme no chão. Depois, é só levar isso para a dança. E é um grande prazer vê-los."
(Ivaldo Bertazzo, coreógrafo, bailarino e diretor do Milágrimas)
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Danilo Santos de Miranda, Diretor Regional do SESC SP, destacou o caráter de "educação permanente" do projeto Dança Comunidade, que beneficia 41 jovens da periferia de São Paulo. Para Miranda, trata-se de uma "ação cultural-educativa", que integra "cultura, artes, esporte, lazer". A parceria do SESC com Ivaldo Bertazzo, que existe há mais de 20 anos, proporciona uma "ação mais integradora com a questão social, educadora", que "discute o percurso das pessoas na periferia, nas favelas". Este "trabalho educativo", que contempla "corpo, a expressão" gera um "resultado estético e artístico reconhecido", graças à realização do SESC e do Bertazzo e sua escola de reeducação do movimento, empresas e instituições, pessoas, todos "portadoras dessa nova metodologia", que gera, na prática, "profissionais, multiplicadores do projeto".
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Ivaldo Bertazzo, coreógrafo, bailarino, professor de dança e terapias corporais e diretor do espetáculo Milágrimas e da Escola de Dança Ivaldo Bertazzo - Reeducação do Movimento, disse que é fundamental "trazer o jovem da periferia para o centro", para compensar a "má circulação" e a não possibilidade deste cidadão "usufruir de centros culturais, museus" e locais que podem contribuir para "formar a qualidade de gesto" destes jovens. Bertazzo disse que a parceria com o SESC representa abrir para estes jovens "um espaço cultural com piscina", "sala limpa e silenciosa". "Não dá para fazer um trabalho estético com barulho", afirmou. Todo este suporte, "para este jovem, é necessário" para a "formação de um método, para trabalhar numa esfera estética com disciplina". "Tem que trazê-lo e ensiná-lo ao máximo, com aula de música, de português" (e ainda canto, percussão, ritmo, lingüística, saúde, história da dança e reeducação do movimento, com coordenação motora).
Bertazzo contou que o Projeto Dança Comunidade está na sua primeira fase, de quatro anos. "É a criação de um método, que requer investimento em pesquisa de como tocar, dançar, trabalhar, criar toda uma linguagem".
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Benjamim Taubkin, instrumentista, arranjador, compositor, produtor e diretor do selo Núcleo Contemporâneo, e diretor musical do espetáculo Milágrimas, disse que a "fusão musical", "a música faz parte de uma coisa maior" no projeto. Conta que Ivaldo lhe apresentou "uma proposta para um desafio", que achou "interessante". "Eu me sinto como viajando pelo mundo", disse, porque "a África que veio... não é a conhecida para nós, músicos", porque tem influências "basicamente religiosa, muito especiais", é "um trabalho pronto, praticamente uma escultura sonora pronta".
Quando pôde unir a tradição isicathamiya com bases fortes da nossa MPB (Música Popular Brasileira), Benjamim disse que Nelson Cavaquinho e Itamar Assumpção, por exemplo, enquanto representantes da "música tradicional brasileira" casaram muito bem com "a música africana". Cita dois exemplos disso: Sapopemba, cantor brasileiro que participa do Milágrimas, disse que "um dos tesouros que o Brasil tem é um HD de música tradicional"; e os músicos africanos afirmaram que "o Brasil tem uma coisa importante: Sapopemba".
Benjamim relata que não houve barreira entre os talentos dos músicos do Brasil e da África do Sul. "Começaram a cantar e a resposta foi imediata, tudo foi espontâneo e no primeiro encontro".
Quando resume a vivência com o espetáculo Milágrimas, o diretor musical diz: "A visão que o Ivaldo tem, como ele pensa a música e fazer um espetáculo com a música, para depois criar uma base para uma coreografia - é muito interessante para o músico trabalhar desse jeito".
Quanto ao Dança Comunidade, Benjamim afirma que "o que esses jovens precisam é só de oportunidade. Se eles dançam assim, eles têm capacidade de ser qualquer coisa".
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Carmute Campello, socióloga e organizadora do livro Tenso equilíbrio na dança da sociedade, disse que reuniu "pessoas de diferentes especialidades que falassem sobre a relação da periferia com o trânsito social e a cultura". Carmute ressalta que a obra conseguiu "ressaltar o poder da cultura, que pode mudar mais do que se imagina". Para a organizadora, tentar ouvir "qual é a voz da periferia", pela investigação do "trânsito entre periferia e centro", resume o coração do projeto Dança Comunidade, que atua "na cultura e no social". Por isso, o resultado desta iniciativa "pode ser um piloto" de sucesso, pois "aponta para uma série de condições" que podem levar a melhorias, a novos projetos "mais complexos, mais interessantes".

Em tempo, o livro traz dez artigos reflexivos sobre ações concretas de inclusão social de jovens por meio da cultura e nas artes (como acontece no projeto Dança Comunidade) e 50 fotos.

RICARDO ODEIA COMPUTADOR

O caricaturista brasileiro Ricardo Soares, de tanto dizer que odeia computador, ganhou uma crônica: "Odeio computador!". Depois da crônica, leia entrevista exclusiva com Ricardo, que fala de sua carreira e do mercado de ilustração no Brasil. 
A CRÔNICA 
Odeio computador!
Cris Campos

- Cara, eu odeio computador. Odeio!Como alguém de olhos fechados que abre os sentidos bem devagar, ouvi aquela frase crua. Desacelerei, para captar melhor a explosão. Categórico, Ricardo afirmou isso diante do seu inimigo.A máquina pareceu sentir o ódio. Magoada, recusava-se a lhe oferecer de boa vontade as soluções para colorir um desenho enviado por uma amiga. Desenho entregue por e-mail. Nem com esta ajuda do correio eletrônico, apiedou-se. O usuário olhava feio para a estação de trabalho que deixa morar na sua casa.Meia hora de briga. Até o mouse estava cansado. E nada. Enquanto isso, pude anotar o suficiente na cabeça para esta introdução.De perto, Ricardo sentado na grande mesa sobre estacas, diante do micro grafite. CPU com cara de frente de carro, teclado moderno, ergonônimo. Preto e prateado combinavam bem no aparelho maldito, que sugava os olhos do humano à sua frente, de cabelo preto-e-branco por coincidência, ou convivência.Ele repetiu:-          Odeio computador. Agora, deu de travar. Olha isso!Aquela frase de ira parecia meio fora de foco a princípio, por isso agucei os seis sentidos.Rodopiei os olhos pelo local e pude ver melhor. Ricardo na mesa grande do micro, ao lado do fax, diante do quadro de cortiça, à esquerda do calendário de mesa.Realmente, quem estava deslocado ali era o coitado do computador. Tudo o mais à sua volta dialoga com a arte do desenho e da pintura feita à mão. Mais precisamente para a arte da caricatura, que hoje exige mais do tempo de Ricardo.Até na hora do jantar, os desenhos paralisam tudo, comandam o cenário.O computador fica inibido, rodeado por potes e copos cheios de lápis, canetas, "coisas" de desenhar, para desenhar, sobre desenhar. Pudera, é máquina parida em escala no meio de um apartamento de artista. Isolado, sem defesa, diante da forças das artes plásticas que assombram o 1.207. Liberdade é o nome do bairro, mas não foi oferecida a ele.Imagine humilhação que não deve ser ficar imobilizado, pregado sobre aquela mesa com cara de utensílio de pintor. Tudo piora quando o destaque do cômodo é o carrinho vermelho para desenho, a poucos centímetros. Projetado na Itália, acomoda produtos para artes como um berço faz com um bebê. Abarrotado de gavetas, andares, espaços para esboços, pincéis, lápis, bastões, réguas, papéis especiais.Aquele artefato parece uma Ferrari. Tem quatro rodas, design italiano e cor brilhante que te obriga a fixar os olhos. E fica cheio de coisinhas interessantes, badulaques, rabiscos, desenhos, obras acabadas. E nunca ouve desaforos, muito menos palavras explícitas de ódio com ponto de exclamação no final.O pobre computador, refém deste espaço, parece gritar quando se olha mais de perto:- Socorro!Mais à frente e perto da grande janela, outra mesa mais imponente se instala. É uma prancheta, uma "tábua ou mesa própria para desenhar", segundo o dicionário Aurélio, página 1.614. Esta desfruta das luzes e da alegria daquela vista: São Paulo de dentro do coração - Catedral da Sé à esquerda, grandes avenidas, muitas luzes coloridas, helicópteros e aviões animados no céu, carros que vão e vêm, com suas luzes vermelhas e brancas. De dia, outras cores aparecem, junto com novos aviões e helicópteros, bailarinos no céu.Aquela janela colorida é a maior amiga do Ricardo, na sua casa-estúdio. Porque ajuda na produção dos desenhos sobre a prancheta. Naquela noite, à direita da caixa vermelha de metal com os famosos lápis suíços Daran d'Ache, para aquarela, repousava uma caricatura recém-aprovada do ator brasileiro Taumaturgo Ferreira.-          Feita à mão. É disso que eu gosto. E está aprovadíssima!Disparou Ricardo da frente do computador. Ele tentava ser solidário ao meu tour, mas seu ódio pelo computador era maior.A janela guardava a chuva e o frio do lado de fora. Também protegia mais e mais material para desenho e pintura aos seus pés. Do lado oposto ao da prancheta, uma mesa de luz e um cavalete para pintura, em local de destaque. Porque Ricardo tem muitos quadros a óleo para pintar e, às vezes, uma ou outra caricatura gosta de descansar ali.Quase ao final da volta, uma estante aconchega livros, gibis (gíria para histórias em quadrinhos). Uma escultura em barro terracota da cabeça do Ricardo com barba debaixo de uma fita do Senhor do Bonfim equilibra aquele monte de papel. Livros sobre os grandes mestres do desenho à mão livre, caricaturistas do mundo todo, vários livros do Chico Caruso, o irmão "quase igual" do Paulo, que também é artista do desenho. E tome quilos e quilos de livros sobre pintores, bem de frente com o cavalete do pintor que mora naquele andar.Do outro lado da estante, um guarda-roupas. À frente e já no limite da parede, uma cama de casal, com edredon.Naquele canto, mais afastado da poderosa janela, fica a mesa do computador. De dia ou de noite, ele não sente as luzes de fora, nem os arco-íris, as cores que se apressam na grande cidade. E nunca saberá desenhar sozinho, nem pintar, nem resmungar, nem manusear coisas de artista, nem pensar nos próximos dois desenhos da série Taumaturgo. Sem pensar nos outros projetos, nos salões de humor, no calendário gigante do Paulo Caruso na parece, na outra prancheta menor no corredor de entrada.O computador dessa casa tem depressão. É máquina sedentária, mora na Liberdade e nunca sai, está longe da janela e das cores da cidade e convive com Ricardo Soares - um artista que desenha e pinta à mão - e sempre fala:-          Odeeeeeeeio computador!
São Paulo, 26 de maio de 2005

A ENTREVISTA
Ricardo Soares tem trinta e sete anos.
Desenha e pinta desde os doze.
Seu site é o www.caricaturaaovivo.com.br.
Nasceu em 14 de novembro de 1967, em São Caetano do Sul, na Grande São Paulo, Brasil.
Faz caricaturas em aquarela e é uma das promessas da arte da ilustração no País.
Filho de João Ribeiro Soares e Carmelita da Silva Ribeiro.
Tem presença em vários salões de humor.
É colega e amigo dos ídolos de antes.
Irmão de João Luiz, Rodrigo, Tânia e Raquel.
Quer voltar a pintar telas a óleo e diz que o mercado da ilustração no Brasil é muito difícil.
Mudou-se para o Piauí, estado de seu pai, quando adolescente. Lá, encontrou o professor Ruiz, de geometria e pintura.
Seu sotaque ainda lembra aquela temporada.
Foi ao primeiro salão internacional do humor, na capital piauiense, Teresina, onde conheceu Chico e Paulo Caruso e outros nomes ilustres do desenho de humor, da caricatura tupiniquim.
Já trabalhava em agência de publicidade, quando voltou para São Paulo.
Desta vez, suas malas carregaram a paixão pela caricatura.
Desenha até no meio do pub, rabisca guardanapo, esboça a caricatura de um, guarda foto de outro para depois.
Vive no meio das cores, dos desenhos, dos livros de arte, dos artistas do traço.
É um deles.
Seu apartamento-estúdio tem uma grande janela, por onde entram luzes, cores e inspirações.
Gosta de sapatos, mas odeia computador.
Desenha com as mãos. Resiste ao mercado informatizado.
É filho das cores, herdeiro da paleta infinita do universo.
Mas tem cabelo preto-e-branco. Ou branco-e-preto?
Cris Campos - Como é participar da Quarta Cultural, da Casa do Artista, quando você produz caricaturas em aquarela ao vivo, com o material da Caran d'Ache?
Ricardo Soares - "Eu acho legal, é uma boa iniciativa da Casa do Artista. É diferente. E acho que tem tudo a ver com a casa, que pode deixar a casa muito mais animada. Como é uma das poucas casas da cidade, e talvez do Brasil, que realmente vende os melhores materiais.
Tem tudo a ver esse tipo de ação com artistas, de experimentar material, demonstrar material, fazer com que o artista tenha o contato com o público. É importante.
Isso pode ter um lado comercial, mas tem um lado social muito interessante, que é o contato do artista com o público. Acho que a gente está numa época em que o artista não pode mais ser enclausurado."
Cris Campos - Quando você começou a desenhar?
Ricardo Soares - "Na escola, como todo mundo. No primário. Fazia cenas, desenhava hasteamento da bandeira, animais. Gostava muito de desenho animado - Speedy Racer, Homem Aranha. Vários desenhos da época, do "Globo Cor Especial" (programa da TV Globo)".
Cris Campos - Quando deu o insight para ser desenhista?
Ricardo Soares - "Na verdade, eu comecei a desenhar mais intensamente quando eu entrei no ginásio.
Tive um professor espanhol que, além de dar aulas de matemática, física, ele desenhava e pintava muito bem. Professor Ruiz. Manoel Mariano Ruiz Vasquez. 
Eu estudava num colégio de padre e ele era professor lá. Não era padre. Um colégio de padres espanhóis, da Ordem de Nossa Senhora das Mercês, da Espanha. No Piauí, em São Raimundo Nonato. Essa ordem tem algumas sedes no Brasil, no Rio de Janeiro, no Piauí e na Bahia. Colégio da ordem mercedária da Espanha."
Cris Campos - Porque isso te marcou?
Ricardo Soares - "Porque eu sempre fui muito apaixonado por desenho e esse contato com o professor Ruiz foi muito importante, porque ele foi o meu professor dentro da escola e eu tinha aulas particulares também com ele. Ele dava aulas de geometria. A gente fazia figuras geométricas sólidas. Ele dava como exercício essas coisas e pintura também.
E através dele, eu conheci a pintura mais a fundo. E a partir desse colégio, eu comecei a pintar em tela, a fazer pintura a óleo. Entrei nesse colégio com 15 anos."
Cris Campos - Como veio a profissionalização?
Ricardo Soares - "Eu nasci em São Paulo, em São Caetano do Sul, em 14 de novembro de 1967. Com 13 anos, fui para o Piauí e fiquei lá 12 anos.
Eu morava no interior do Piauí, nessa cidade (São Raimundo Nonato). O meu pai foi para lá porque lá ele tinha condições de pagar um bom colégio; e esse era um bom colégio.
Depois, quando eu terminei o ginásio e fiz o primeiro ano do segundo grau lá, fui para a capital, Teresina.
Eu fui para o Colégio Agrícola, de Técnicas Agropecuárias, através da Universidade Federal do Piauí. Eu fiz o primeiro ano e saí. Acabei abandonando o curso, que não tinha nada a ver comigo. Aos dezenove anos.
Mas aí eu comecei a conhecer pessoas que trabalhavam na área, e aí eu fui trabalhar numa agência (de publicidade). Fui indicado para uma agência, fui lá e mostrei o trabalho.
Eu fazia logotipo, fazia arte-final. Fazia um trabalho que ninguém mais faz hoje, com o advento da informática, que é pastup - colava letra por letra, montava texto. Ninguém hoje precisa fazer mais isso. E ilustrava também, fazia ilustração dentro das agências. Tive contato com artistas muito bons."
Cris Campos - Mas quando você descobriu a caricatura?
Ricardo Soares - "Ali em Teresina, eu conheci o Salão do Humor, que é o Salão Internacinal do Piauí, um dos melhores salões do mundo. Eu comecei a ter contato com os trabalhos de caricatura, desenho de humor. Eu me apaixonei.
O primeiro salão que eu vi foi em 1987. Eu nem imaginava que existisse um salão daquele no Piauí. Não discriminando o Piauí, mas eu fiquei surpreso porque o nível do salão e os convidados de renome que iam lá. Era Luís Fernando Veríssimo, Paulo Caruso, Chico Caruso, Angeli, Laerte. Eu cheguei a ver tudo isso de uma vez só."
Cris Campos - Foi uma amostra daquilo que seria o seu futuro? Naquela época, você pensava que se tornaria amigo e colega, por exemplo, do Paulo Caruso?
Ricardo Soares - "Pois é. Nem imaginava. E quando eu conheci o salão do Piauí, não conhecia nenhum artista da cidade. Eu ainda estava no Colégio Agrícola."
Cris Campos - E quando você veio para São Paulo?
Ricardo Soares - "Depois de trabalhar algum tempo lá em agência. Vim com a cara e a coragem. Sozinho. Quando o trabalho começou a ficar muito escasso em Teresina, eu vi que era a hora de ir embora e buscar novos horizontes. Eu sabia que as maiores editoras estavam aqui, os jornais, as revista, as agências. O mercado de São Paulo é muito melhor.
Tinha que ter vindo mesmo. Não tinha outra saída.
Foi difícil. O começo foi muito difícil. Morando em pensão, passando necessidade. Eu fui trabalhar num estúdio e com o advento da computação, levei um pé-na-bunda do estúdio e não fui aproveitado."
Cris Campos - Hoje, em quê fase da carreira você está?
Ricardo Soares - "Eu acho que estou numa fase boa. O meu desenho evoluiu, apesar da estagnação do mercado. Eu acho que o mercado de ilustrações está um pouco ruim. As editoras pagam cada vez menos.
Com o computador, todo mundo se tornou ilustrador. Qualquer pessoa pode ser ilustrador hoje em dia, tendo um Macintosch e as editoras aceitam isso.
Mas eu me sinto bem com o meu desenho, acho que ele evoluiu apesar de tudo, apesar de todas as dificuldades.
Tenho atuado muito em eventos. Tem sido uma saída para manter a casa, para manter o ganho, pagar as despesas. Essa tem sido a luta. Mas eu acho que o artista tem que deixar um registro, fazer quadrinhos, fazer ilustração. E o mercado não está apreciando muito isso."
Cris Campos - O que falta?
Ricardo Soares - "Eu acho que tem um certo mercado sim. Mas para quem não está trabalhando com computador, está se tornando um pouco mais restrito. O que é uma pena, porque nos Estados Unidos e Europa, isso não é uma regra. No Brasil, se tornou uma regra: ou você abraça a informática para trabalhar com ilustração, ou você está fora do mercado. E é uma pena, porque a mentalidade na Europa e nos Estados Unidos é outra.
Eu acho que se você é um bom desenhistas, é um bom ilustrador, não importa a técnica com a qual você trabalha.
No Brasil, se tornou uma imposição. Porque a maioria os editores de arte acham que você tem que trabalhar com o computador. São eles que acham; não o ilustrador. Eles têm pressa em ganhar dinheiro e, quanto mais ilustrador usando computador, menos eles pagam, porque eles acham que é tudo mais rápido e mais fácil. Quem dita as regras do mercado da ilustração não é o ilustrador, são os editores de arte."
Cris Campos - E o que você quer fazer? Qual o teu sonho?
Ricardo Soares - "Eu quero continuar desenhando, melhorando cada vez mais o meu desenho, quero fazer caricaturas pra salão e gostaria muito de fazer quadrinho. Mas eu não gostaria de fazer quadrinhos no Brasil, porque eu não acredito no artista que vive de brisa, no artista que vive de idealismo.
Não que eu seja alguém que só pensa em dinheiro. Eu acho que o desenho, a arte tem que ser encarado como uma profissão qualquer. Você depende dessa profissão. Você precisa viver bem através da profissão, você precisa comer bem, se vestir, comprar material de qualidade e adquirir cultura através de livros, assistir peças de teatro, ver cinema de qualidade. O artista precisa disso. E o artista que não ganha bem, ele não pode fazer nada disso, nem ter paz de espírito pra criar."
Cris Campos - E o que os especialistas que hoje te conhecem, como o Paulo Caruso, falam do seu trabalho?
Ricardo Soares - "O Paulo gosta do meu trabalho. O Paulo acha que eu evoluí muito. Eu acho que tem o seu lado bom, mas não me acho também um fã babaca que vê o ídolo como o extremo. Eu acho que ele passou por fazes e adquiriu esse renome porque trabalhou muito. Eu estou traçando o meu caminho também, trabalhando muito e evoluindo no meu desenho. O Paulo é uma referência, assim como outros artistas foram referência para ele."
Cris Campos - Quem mais é referência para você?
Ricardo Soares - "Eu acho que alguns desenhistas europeus são referências. Eu gosto muito do caricaturista Sebastian Krüger, que é alemão e está fazendo um trabalho fantástico pintando as caricaturas dele em acrílico.
Gosto muito do All Hirschfeld, que morreu já e era americano, como o Will Eisner. Gosto muito do Milo Manara, que é italiano, o Eleuteri Serpieri. E outros que fazem trabalho já numa outra linha, como o Dave Mckean, que é inglês, fez muitas capas do Sand Man.
Meu gosto é variado, porque se você comparar o trabalho do Hirschfeld com o Dave Mckean, são diametralmente opostos. O Hirschfeld era o mestre da caricatura, o mestre do traço preto, da caricatura -  tanto que ele ficou conhecido como o King of line, o Rei do traço. E o Dave Mckean fazia um trabalho totalmente existencialista, totalmente diferente, pintado, não é traço.
No Brasil, acho que temos grandes mestres da caricatura: o Paulo, o Chico (Caruso), o Cárcamo, Baptistão do Estado de S. Paulo, Pavaneli, Dino Alves. E na ilustração, eu tive o prazer de conhecer o Jayme Leão, que fez as melhores capas de livros didáticos que eu já vi, as melhores ilustrações para paradidáticos. O Benício também."
Cris Campos, Bons Ventos - E você pretende dar aula?
Ricardo Soares - "Acho que é um objetivo futuro sim, acho que é legal. Pode ser interessante passar a experiência para outras pessoas, no futuro."
Cris Campos - É possível ensinar qualquer criança a desenhar?
Ricardo Soares - "Eu acho que é possível, mas a nossa sociedade educa as pessoas a ganhar dinheiro apenas. E a gente ainda vive muito influenciado pela idéia de que você tem que ser um doutor para adquirir respeito na sociedade. Existe essa idéia muito forte ainda.
E parece uma coisa colonial, do filho do senhor que vai para a Europa e volta com um diploma e, quando volta, é respeitado por todo mundo. E ele é respeitado por causa daquele diploma, por causa daquela posição social que ele adquire.
E o Brasil tem essa coisa que eu acho absurda: se você é artista, você não é respeitado como deveria. Na Europa, se você é um artista, você é respeitado.
Um professor meu, que era padre, me falou uma coisa muito interessante uma vez - padre Cassimiro, professor de filosofia na universidade católica, na PUC (Pontifícia Universidade Católica) de Salvador -: 'no Brasil, você adquire respeito quando adquire um diploma de médico, por exemplo, ou quando se torna padre; enquando na Europa, você adquire respeito quando se torna artista'. É totalmente diferente, é outra mentalidade."
Cris Campos - Por isso que você fala em ir para a Europa?
Ricardo Soares - "Eu gostaria de ter essa experiência sim. Sei que não é fácil. Acho que o artista na Europa ainda é mais bem remunerado que no Brasil."
Cris Campos - E o que falta?
Ricardo Soares - "Acho que o ponta-pé inicial seria ter dinheiro para chegar lá. Apesar do meu objetivo ser ganhar dinheiro com o meu trabalho, seria chegar lá também um pouco amparado financeiramente. Aqui está difícil."
* * *
Nota: Entrevista concedida em 19 de maio de 2005, no Café Creme, da Avenida Paulista, em São Paulo. Logo depois de visita à Casa do Artista. Noite bonita, um pouco fria, regada a cerveja, porção de frango grelhado com torradas e catupiri e um simpático vendedor de pequenos bonecos de pano.

O menino que pega avião no céu e a menina de pés e mãos que voam

Crônica sobre o espetáculo "Aviões & Arranha-Céus - Um Monólogo Manipulado", criado por Ricky Seabra e Andrea Jabor em 2002 e apresentado em Portugal e no Brasil.
 Cris Campos

A obra encerrou três dias da programação "Habitar a Imagem" do Itaú Cultural, de São Paulo, em 23 de julho - dentro da grade da exposição Cinético_Digital. De 06 a 10 de novembro de 2005, "Aviões" serão apresentados ao vivo em Paris, na Menagerie de Verre.

Parte 1: Crianças que fazem arte

Quando o menino Ricky viu um avião pela primeira vez, tentou segurar o aeroplano com a mão direita e quase conseguiu. Naquele instante, a turbina do seu coração rugiu no giro máximo e a alma de artista da criança de Washington alçou o primeiro vôo.

No Brasil, a menina Andrea imitava a bailarina do filme que assistia. Seus pés quase acompanharam os movimentos, mas não saíram do chão. A dança fisgara seu coração naquele exato momento. Mas foi quanto suas mãos tocaram o monitor de tevê, que ela soube que as sapatilhas a fariam voar.

Se não ocorreu exatamente assim, não importa. Fato é que, cerca de vinte anos depois, Ricky Seabra encontrou Andrea Jabor. E foi depois da semeadura de arte que o Universo fizera nos dois.

A germinação precisou de muitas viagens e estudos, aperfeiçoamento, apuração do olhar, coreografias e carinho com o sonho de fazer arte e de nunca parar de brincar como criança. Até que chegou o tempo da colheita. Isso aconteceu por volta de 1995, quando começaram a criar juntos. Ele, um designer e performer; ela, bailarina, coreógrafa e diretora.

Dez anos mais de trabalho e criação, chegou a maturidade artística que o Universo reservara de presente àquelas duas crianças. A recompensa por não se deter um avião com as mãos, ou fazer os pés com sapatilhas decolarem: a iluminação de habitar imagens, criar espetáculos multimidia-transartísticos, onde a arte e a história de vida de cada um conversam ao pé-de-ouvido com o público.

Numa platéia lotada de 270 lugares, ora um menino, ora uma menina falaram baixinho ao meu ouvido. O menino Ricky e a menina Andrea fizeram, naquele palco, arte. Arte de primeira grandeza, gerada das mãos do artista - manufaturada, manutenida, manipulada. Assim, eles viraram luz e, como partícula-onda, revisitaram imagens, memórias, a si mesmos, a gente. Habitaram imagens no espetáculo e na minha cabeça. Hoje, habitam em mim também.

Ricky segurou um avião por algum tempo, na imagem da tela grande. Também entrou pelos corredores de um escritório do World Trade Center e mostrou como olhava as torres gêmeas deitado no chão e lá do alto, no Observatório. Ele continua com os olhos no céu.

No monólogo interpretado por Ricky, a dinâmica da direção de Andrea dá sabor de dança ao espetáculo.

Porque as mãos que concentram a queda das torres, após o beijo dos jumbos naquele 11 de setembro; e que contam a história do pôr-da-lua duplo, durante um vôo noturno de avião; são as mãos de Ricky, dirigidas e encenadas pelas mãos de Andrea.

Porque as memórias de aviões e arranha-céus hoje são mais tristes do que quando ambos eram crianças e brincavam de pegar avião e de dançar com mão e pés fora do chão.

Foi o que senti, depois de assistir ao espetáculo "Aviões & Arranha-Céus - Um Monólogo Manipulado", criado por Ricky e Andrea em 2002 e apresentado no sábado à noite, em 23 de julho de 2005, no Itaú Cultural, em São Paulo, Brasil.


Parte 2: O espetáculo

Chegamos em três. Eu, minha prima Miriam e o filho dela, Thiago, de 16 anos. Assistir ao espetáculo "Aviões & Arranha-Céus - Um Monólogo Manipulado", no Itaú Cultural, era o programa daquela noite de sábado. Fomos caminhando, pois a avenida Paulista é perto de casa. Primeira visita deles a São Paulo. Estréia de todos nós, perante a arte de Ricky Seabra e Andrea Jabor.

Em cima da hora, pegamos os três ingressos gratuitos na bilheteria, com alívio de não perder a chance de saborear arte. Na Sala Itaú Cultural, o grande teatro do prédio, sentamo-nos nas extremidades da direita, na duas primeiras filas. Quase não havia mais lugar vago.

Tudo pronto. Celulares desligados, corpos acomodados. Corações e mentes abertos. Olhos curiosos.

Telona branca, uma mesa de trabalho no palco, como as dos estúdios de criação de qualquer artista - cola, caneta, papel, fios, recortes, um pouco de tudo. Papéis espalhados no chão, com margem queimada, moldura de fogo. E um homem. É o próprio Ricky Seabra. Aplausos para ativar a atenção do Olimpo e voilá.

Pensamento número um:
-          Estou diante de um "animador de imagens", uma espécie de controlador de marionetes virtuais. Faltam bonecos. Como seriam? Alienígenas?

Debaixo do foco de uma lente de filmadora digital, presa a um braço de ampliador, a história de "Aviões & Arranha-Céus" começa a ser contada por duas palmas de mãos, com desenhos de aviões no seu centro. O zoom in evidencia as dobras e as figuras de carvão das aeronaves na pela humana. Máquina de pele-pintada. Pele de fuselagem.

Zoom out e se evidencia que as mãos em questão são de um homem. "Se é que artista tem sexo em cena."

E voltam as palmas e os aviõezinhos. Ambas lembram, numa coreografia triste, como caíram as duas torres do World Trade Center, de Nova Iorque, no atentado terrorista de 11 de setembro de 2001. A segunda, inconformada, quase grita seu último urro primal, para terminar como começou.

Nas mãos do artista, a narrativa chega perto do público pela força de ampliação da imagem da tela grande. A mesa de trabalho, peça de cena, vira tela mental, nosso cinema. E imagens (de miniaturas de aviões, fotos e gravuras) entram e saem de foco, sobre as folhas que seguram as mãos de Ricky. Aviões e arranha-céus. Manuseia na sua frente o que o público vê, em tamanho gigante, no fundo do palco e atrás do artista.

A performance de Ricky tem um leve sotaque. Talvez por ser filho de americano e bisneto de português.

Pensamento número dois:
-          Parece carioca. Ou português? Tem um esse arrastado, cantado.

O texto do "monólogo" prossegue. O narrador tenta voltar no tempo, no exato momento em que a imagem de um objeto voador denominado avião era referência de "invenção genial, símbolo da modernidade e da rapidez de transporte na Terra". Se congelado, este momento também daria significados aos arranha-céus mais antigos: "maravilhas da engenharia, o máximo do trabalho de equipe".

Símbolos positivos, em significante e significado. Ícones de poder e de superação da condição humana e Mortal.

 O artista pergunta:

-          Onde começaram os atentados de 11 de setembro, que mudaram as imagens, o imaginário sobre aviões e arranha-céus?

As respostas possíveis trazem ao discurso do espetáculo uma pausa dramática, de making of. De repente, Ricky fecha um grande livro. Minha paixão pela Literatura agradeceu. Tela lacrada no palco. Vazia. E volta a mão, fragmentada em alguns dedos no foco. Bate os dedos sobre a capa dura, como quem pára para refletir.

A sonoplastia confirma: ele descarta uma possibilidade de resposta com um monossílabo de negação:
- Hã, hã.

Vira a página da História, abre o livro novamente e narra outra possibilidade de achar o fio da meada.

A origem da "nova imagem" que domina as mentes terrestres, sobre aviões e arranha-céus, é investigada por uma, duas, três alternativas de respostas à questão da causa dos atentados.

Pensamento número três:
-          Onde estaria o primeiro insight de se imaginar um avião como um "Molotov" gigante, que poderia ser arremessado contra um arranha-céu? O primeiro filho da puta que pensou isso não poderia ter sido fulminado com um raio de fúria do Criador do Universo? O que será desta nossa espécie medíocre?

Ao final de cada relato, que mescla dados concretos - como o atentado terrorista anterior contra as torres gêmeas - e imagens do filme "Inferno na torre", com Paul Newmann - Ricky fecha o livro.

O performer manuseia, no palco de "Sobre Aviões & Arranha-Céus", todas as artes - dança, música, literatura, cinema, teatro, música, desenho. E conta história ao vivo como se dançasse uma coreografia. Mão de Andrea Jabor, diretora do "monólogo", bailarina e coreógrafa.

Voltam as imagens de ficção e de realidade. Telona congela naquele corpo deitado de mulher. Foto em preto e branco. Olhos fechados. Corpo cheio de ondas. Os olhos querem enganar o coração. Parece uma bailarina, uma modelo em pose difícil. Até que Ricky entra na imagem cerebral dentro da gente e diz, com todas as letras, que ela matou-se, ao pular de um arranha-céu, na década de trinta, em Nova Iorque, por desilusão amorosa. Caiu sobre um carro.

Pensamento número quatro:
- Para sair da Terra, fez parte do prédio alto por alguns instantes. Voou pela primeira e derradeira vez. Entrou para a história e destruiu o que pôde, na sua queda-livre: um automóvel. Pele de pele. Aço de aço.

Novas imagens de arranha-céus. E idéia-de-girico de fazer o Zepelim pousar no topo do mais alto prédio da Grande Maçã, nas mãos de Ricky, arrancam gargalhadas da platéia. O recorte da imagem de um prédio e o zepelim arisco a vento, que parece voar de ré, aliviam um pouco a densidade do espetáculo. Lembram os teatros de bonecos, o circo, as brincadeiras lúdicas, as aulas mais inspiradas na escola, Vila Sésamo, Glub-Glub.

E vêm os bonecos. Bush, Saddam, Osama. Com uniformes militares camuflados. Brigam nas mãos de Ricky. Todos apanham. Por manipular a imagem de aviões e arranha-céus para seus fins. Por fazer-nos de bonecos reais. Diferente do jeito que se segurava um Falcon, ou uma Barbie, ou Emília, as mãos de adulto do menino de Washington, naquele palco, mostram raiva. Castigam os bonecos sem dó, na medida adequada para aquele contexto. Não eram bonecos Vudu, infelizmente.

No meio do espetáculo, lembrei-me da imagem deletada, depois do filme pronto, em que a teia do Homem-Aranha prende um helicóptero entre as torres do WTC. Como se o Deus Chronos tivesse que mandar um grande STOP! à gana(ânsia) do homem, ou à simples mania de fazer planos, cálculos e projetos para o futuro. Justo o tempo que nunca pertencerá aos terrestres.

E mais imagens e trilhas sonoras novas mantêm-nos em velocidade de cruzeiro e vôo alto durante o espetáculo. As imagens das cidades futuristas e fantásticas de "Blade Runner" e "O Quinto Elemento" aguçam nossa memória. Enquanto elas brilham a telona, a mente é animada por um grande baile de neurônios vizinhos, com suas sinapses ousadas, que remetem ao bebê de "2001- Uma odisséia no espaço", à teoria de que o centro do Universo está dentro de cada ser vivo - frase lembrada pelo golfinho falante do seriado "Sea Quest", do Steven Spielberg.

Pensamento número cinco:
- Hollywood reinventa a realidade com suas "imagens virtuais", de ficção. E as "imagens reais" tentam superar a arte, no bombardeio que recebemos pelo canal mais comum: a CNN. Aquele Live ("Ao vivo" no Brasil e "Directo" em Portugal) no canto da tela da tevê era a coisa mais surrealista que Salvador Dali poderia imaginar: o real. Afinal de contas, quem se alimenta de quem - a imagem real, ou a virtual? Quem é inspiração para quem? Onde está nossa imagem real?

Ricky Seabra mistura também trechos de sua história de vida e de ficção à narrativa do espetáculo que idealizou junto com Andrea Jabor. Conta de sua paixão por aviões, dos desenhos que fazia de grandes prédios, que nasceriam acima dos arranha-céus e que batizara de "Colossus". Relata como foi a sua primeira visita ao World Trade Center, nos primeiros dias como morador da cidade de Nova Iorque, para onde fora estudar arte. Relata como era, no observatório do 107º andar:

-          Encostar os pés e o nariz no vidro e olhar para baixo. A ponto do Brooklin era deste tamanho (e mostra poucos centímetros com o polegar e o indicador de uma das mãos). O aço dentro da mão. A mão que comporta tudo, de cima. O "Dedo de Deus", numa esfera mais humana.

Quando arrasta a sua cadeira pelo palco e entra na imagem interna de um escritório do WTC. Desvia das filas de mesas de trabalho e chega à janela. Dança sentado, como se voltasse no tempo. Mistura realidade e ficção. Vira imagem no palco e dá vida à gravação caseira, feita há muito tempo, quando incorpora a sua sombra à imagem na tela. "Habita a imagem", como requereu o espetáculo, na concepção que desenvolveu junto com Andrea Jabor.

"Aviões & Arranha-Céus" termina. Repara-se no equipamento preso à cabeça de Ricky. E ele volta a ser um artista multimidia, no palco, que foi um menino que gostava de aviões e arranha-céus e que sente saudades do tempo em que aviões e arranha-céus tinham uma imagem mais simples, mais alegre. E isso era real.

Hoje, essa imagem é ficção, sobretudo para quem tem até quatro anos de vida. Mas pode ser habitada pela arte. Sem a arte, esta referência boa, resgatável, estaria perdida no tempo-espaço, no não-lugar, ou presa no ciberespaço.

Para quem esteve na apresentação de "Aviões & Arranha-Céus" em São Paulo, Lisboa, ou estará em Paris, significados quase esquecidos são novamente introjetados.

Porque imagens de "Aviões & Arranha-Céus" passam a habitar em nós.

Não por acaso, levamos para casa duas páginas das folhas que compuseram o cenário. Em uma delas, a letra de Ricky Seabra e fragmentos do poema "For a moment: tenderness", que é declamado no espetáculo.
***
Ficha técnica

"Aviões & Arranha-Céus, Um Monólogo Manipulado"
Criação: Ricky Seabra & Andrea Jabor
Idéia original, texto e performance: Ricky Seabra
Direção e encenação: Andrea Jabor
Desenho de luz e técnica: An de Hondt
Produção: Kunstencentrum nOna, Mechelen, Bélgica
Montagem de vídeos: Guido Van Troost
Montagem de trilha: Ricky Seabra
Sonoplastia: Marc Nukoop & Atilla Nemeth
Operação de luz e coordenação técnica: José Geraldo Furtado
Produção executiva: Fomenta - João Braune
Direção e produção: Ricky Seabra & Andrea Jabor
Duração: 70 minutos
Agradecimento: Academia do corpo de Bombeiros da Província de Antuérpia
Animação em computador: generosamente realizada pela Medialab/Atos Origin Engineering Services B. V., Holanda
Dedicação: a Sander Waring Harden (1997-2003)
Site de Ricky Seabra: http://www.rickyseabra.com
Site de Andrea Jabor: http://www.andreajabor.com.br
O site de "Aviões": http://www.rickyseabra.com/avioesearranhaceus.html
Projeto MÚSICA PARA OS OLHOS promete
agitar produção cultural brasileira em 2006

A produtora cultural MônicaHernandes conta como esta iniciativa integrará artes plásticas, música instrumental, vídeo arte, intervenções urbanas com a história dos carroceiros e catadores de lixo das metrópoles. MÚSICA PARA OS OLHOS será uma explosão de arte visual, que deve percorrer nove estados brasileiros em 2006.

Cris Campos 

Mônica Hernandes é produtora cultural, curadora de arte, marchand e coordenadora de exposições como "Música e Cor", que exibiu os quadros do artista plástico Farago em 2005, no Cultural Blue Life, em São Paulo, Brasil. A primeira mostra individual estimulou a veia criativa de Farago e Mônica. Eles continuam juntos no projeto MÚSICA PARA OS OLHOS que, em 2006, deve percorrer nove estados brasileiros com uma interessante proposta de arte visual. A idéia é integrar artes plásticas (com uma mostra de cerca de 25 quadros), música instrumental (CD de jazz e blues) e vídeoarte com intervenções urbanas realizadas por artistas, carroceiros e catadores de lixo. Mônica Hernandes inspirou dois textos da colunista Cris Campos, do Brasil: a crônica "Casa Azul" e uma entrevista exclusiva, que você acompanha nos links abaixo:


CRÔNICA
Casa azul

Onde a grande avenida vira a esquina e finge ser uma pequena rua, ela se instalou. Os sobrados fazem fila, como no Pelourinho de Salvador. Mas são tímidos, pastéis. O número 617 não; talvez pense que é baiano. Todo lindo. É de um azul escuro tão profundo que chega a dar saudade de tudo que é bom e que passou, passa ou passará nesta vida.

Da porta na varandinha, ela abre o sorriso. Camisa vermelha, decotão, brincos de cristal rosa cheios de luz. Cabelos cacheados caídos aos pés da gravidade. Colo farto de mãe - do Bruno, um "artistinha" de quatro anos. Filho de Wilson, pai músico e de Mônica. Morena e Mãe de mais gente. E de todas as cores das sete faixas do véu de Íris.

O Sol que reflete na casa Mágica. Lá do céu, ele sabe que debaixo das telhas tá cheio de quadros, encostados nas paredes, no chão, no ar.

Por enquanto, são doze artistas que Mônica acomoda no coração e sob os olhos castanhos. Debaixo das suas asas, só não entra quem é bobo. Ou tem medo de fazer arte. Ou não sabe sorrir alto, escancarado, com a roupa tingida de tinta. Ou pensa que a arte não é humana, não está para esta subdesenvolvida vida. Tem que esconder. Quando "arte é para ser vista", diz Mônica.

Ela sabe, desde pequena, que arte é vida. Porque Mônica Hernandes é Marchand, assessora de artistas, curadora de arte, criadora de casos, fomentadora de estórias.

Uma arteira artista, babá de artistas no Brasil, que dá tchau do sobrado azul da rua que quebra à direita. Aquela ruazinha que faz reverência ao grande parque verde que lhe emprestou o nome: Ibirapuera.

No meio de São Paulo, encontrar Mônica é como mergulhar num quadro colorido, tropical, caliente. E achar, no embaçado expressionismo poluído da realidade, uma flor brasileira da metrópole. Nítida. Clara. Simples. Mônica Hernandes.


ENTREVISTA
Menina arteira

Com voz bonita e cercada por quadros e objetos de arte, Mônica Hernandes sentou-se na mesa, de frente para uma janela escancarada ao céu de outono. Azul. Só azul. Acomodada nesta moldura, como uma Maddona de verdade, ela contou a história da primeira exposição de Farago e falou, com exclusividade pra o Bons Ventos, sobre um projeto maior, MÚSICA PARA OS OLHOS, que florescerá em 2006. Assim:

Mônica Hernandes - "MÚSICA E COR foi a primeira exposição individual do Farago. Nós temos um projeto, para o ano de 2006, que se chama MÚSICA PARA OS OLHOS, que é exatamente retratar, através do trabalho do Farago, interagir com a música e com a própria composição visual.

Itinerante. Ele já está preparando. Na verdade, essa Música e Cor foi uma premier do que vai ser o projeto todo. E a gente quer colocar em nove estados. Então, seria São Paulo, Paraná (Curitiba), Minas Gerais (Belo Horizonte), Distrito Federal (Brasília), Rio de Janeiro, Santa Catarina. E tem um CD.

Música para os olhos está muito voltado para o jazz. Jazz e blues. E até para dismistificar um pouco, no Brasil, a coisa da música instrumental também. E aí tem um CD de jazz e mais toda exposição, que tem em torno de vinte e cinco obras.

O blues é uma delícia e as pessoas têm uma certa reticência. Essa é a idéia. E está linda a exposição. Tem camisetas, brindes promocionais. Vai ter todo um trabalho de assessoria de imprensa para tudo isso. Então, eu acho que são os dois trabalhos principais do Farago mesmo.

Quando eu era coordenadora cultural, o Farago veio e disse:
-          Preciso te apresentar um projeto que eu tenho.
Eu falava:
-          Puxa vida, ele fala e não me apresenta.
Até que um dia, eu disse:
-          Farago, eu preciso saber, para eu poder encaminhar a sua carreira, eu preciso saber.
Ele falou:
-          Eu tenho dúvidas da minha linha de trabalho.
Eu falei:
- Então, vamos lá.
E marcamos uma reunião. Quando ele me mostrou, eu virei e falei:
-          Essa é a sua linha de trabalho. Você vai crescer muito, por estes traços gestuais mesmo. Ele é mais solto.
E eu falei:
-          Pega a música e vai desenvolvendo o projeto.
Então, eu peguei um filho.
No dia da exposição, ele estava muito feliz.

(Nota: o vernissage da primeira exposição do Farago aconteceu na noite de 04 de maio de 2005, no Cultural Blue Life, de São Paulo, Brasil.)

Inclusive essa já é uma segunda fase do trabalho, em que eu vejo o crescimento dele. Muito mais solto. Então, as pessoas que acompanharam lá atrás, vieram conversar comigo:
-          Mônica, que amadurecimento de trabalho!
Isso é muito legal. Porque aí você vai vendo o artista amadurecendo mesmo. Porque isso eu já tinha visto lá atrás. Eu falei:
-          Farago, daqui um tempo você vai estar muito mais solto, a proposta vai estar redonda.
E eu já senti isso. Para mim, naquele dia estava nascendo um filho. E as pessoas percebendo já uma evolução de trabalho.
Ele está muito maduro, por ser um artista jovem, é a primeira exposição individual, mas ele tem projetos muito bacanas.
E vai ter um outro, que a gente vai realizar que é uma intervenção urbana e o Farago vai estrar trabalhando a parte de artes plásticas. É um projeto já mais arrojado, em que ele vai estar se mostrando mesmo para a cidade. Mais contemporânea a proposta. Tem um cunho social, que é com os carroeiros, os catadores de lixo. Então, essa proposta vai estar muito bacana também."

(Nota: O curta-metragem brasileiro Zagati conta a história de um catador de papel de São Paulo, José Luiz Zagati, que sobreviveu décadas da sucata, do papel, do papelão e de filmes de cinema que resgatou do abandono no lixo. Não por acaso, um dos diretores do filme, Nereu Cerdeira, participará do projeto MÚSICA PARA OS OLHOS.)

E aí, então, a exposição aconteceu lá no Blue Life, no andar superior. E a gente vai trabalhando, para que as empresas também conheçam o trabalho dos artistas, principalmente do Farago que tem esta proposta. Estamos na fase de captação de patrocínio, justamente para este projeto MÚSICA PARA OS OLHOS acontecer em 2006."

São Paulo, Junho de 2005