Caminhos da música
“Bolero de Ravel e um alongamento d'olhos: a
regência do bailarino Donn a dança do maestro Karajan” é a crónica de Cris
Campos composta depois de uma caminhada que terminou de forma inusitada.
Cris
Campos
São Paulo - Num sábado à tarde,
uma caminhada pelo Centro de São Paulo terminou de forma inusitada. Após uma
tromba d'água, daquelas que te obrigam a descansar o guarda-chuva - que não
protege dos pingos que sopram de cima abaixo, junto com o vento -, um encontro
abordou "O Bolero de Ravel - a
obsessão do ritmo".
Uma hora e meia de alongamento de
olhos, abertura de ouvidos e coração. O final do exercício, que integrou o
projeto "Caminhos da música - Encontros de formação de platéia" do
Centro Cultural Banco do Brasil, foi um irresistível movimento de mãos.
Os aplausos em pé nunca serão suficientes para agradecer ao músico Maurice Ravel pela sua composição do Bolero, nem ao coreógrafo Maurice Bèjart pela criação do balé e pela
escolha do solo do bailarino argentino Jorge
Donn, tampouco ao maestro Herbert
von Karajan, que regeu sem batuta uma das mais belas interpretações do
Bolero, com a Orquestra Filarmônica de Berlim.
O aquecimento das pernas acabou
em alongamento d'olhos, mas o verdadeiro condicionamento daquela tarde foi da
alma.
Crônica para Jorge
Bolero de Ravel e um alongamento d'olhos:
a regência do bailarino Donn a dança do
maestro Karajan
Logo que peguei a programação do
Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB, cuja programação está em
bb.com.br/cultura), de São Paulo, anotei o compromisso na agenda: rever Karajan
no dia 12 de março, das 16h às 17h30.
Chegou a tarde de sábado tão
esperada. Saí do restaurante Satori e uma chuva de vento pegou-me na Praça
Carlos Gomes. Minha admiração pelo grande maestro fez-me esperar meia-hora em
um sebo. Parada estratégica, que me fez encontrar mais dois títulos, que
acomodei na bolsa, junto à biografia Conversando com Karajan, de Richard
Osborne (traduzida para o Português por J. E. Smith Caldas, na impressão da
Editora Siciliano, de 1992).
Perto da Catedral da Sé, andei
pelos calçadões molhados e muito lisos até a rua Álvares Penteado, onde fica o
belo prédio do CCBB.
Às dezesseis horas, começou o
curso. Térreo do edifício, sob a bela cúpula de vidro que deixa a luz do dia
entrar, platéia montada diante de um grande telão. Dois músicos profissionais
se posicionaram nas laterais, apostos para a demonstração da caixa clara,
instrumento essencial para a execução da partitura do Bolero de Maurice Ravel.
Esta espécie de "tambor" de metal, ou pandeiro grande, marca o ritmo
grandioso e prepara o terreno para a melodia, repetida 17 vezes até o final,
num crescendo até o Fortíssimo, que
até a alma aplaude.
O projeto - O tema "Bolero
de Ravel - a Obsessão do ritmo" abriu os oito encontros do projeto
Caminhos da Música - Encontros de formação de platéia, agendados até dezembro
de 2005: "Tributo a Carmem" (9 de abril), "A música e o
movimento" (7 de maio), "Tudo pode ser chorinho" (11 de junho),
"As vozes do canto lírico" (2 de julho), "Música e imagem"
(15 de outubro), "Maestro por um dia" (5 de novembro), e "Natal lírico" (3 de dezembro).
Todos realizados aos sábados, às 11h ou 16h.
O objetivo dos 'Caminhos da
Música" é instrumentar a platéia para saborear melhor a riqueza das artes,
sobretudo a música, em espetáculos diversos, como: concertos, óperas, balés,
apresentações de grupos musicais, ou para aqueles momentos em que nos
permitimos ouvir boa música no escuro, num cantinho aconchegante.
E colocar a arte ao alcance do
público, seja por meio do manuseio de instrumentos musicais, seja cantando uma
melodia ao microfone, ousar passos de dança ali mesmo, ou "brincar"
de reger. A iniciativa já tem 11 anos de sucesso.
As professoras - As próprias coordenadoras do projeto
"Caminhos da música" repepcionaram o público, com sorrisos e muita
cordialidade: Clarice Miranda e Liana Justus. Clarice é musicoterapeuta, cantora
(soprano) e compositora.
Liana é mestre em História, especialista em História de Música e
pianista. Clarice e Liana são autoras do livro Formação de Platéia em Música,
publicado em 2000, e de “Formação de Platéia em Música em CD-Rom e Vídeo”,
lançado em 2004 pela Editora Siciliano.
Essas duas damas e professoras
são membros da Academia de Cultura de Curitiba e pioneiras em cursos de
Formação de Platéia em Música, nas periferias de Curitiba e São Paulo. Milhares
de alunos já testemunharam a sua dedicação à música.
Música e dança - Naquele primeiro dia, o mote era a interação da
música erudita com a dança e a apresentação dos instrumentos de uma orquestra
sinfônica, por meio da genial seqüência criada por Ravel para a entrada dos
diversos sons na evolução do Bolero.
Também se abordaria a história da
criação da peça, um pouco da vida de Maurice Ravel e a influência de sua música
na dança do século XX, sobretudo com as coreografias modernas. Uma fila de
talentos surgiu na tela e, assim, voou a hora e meia do encontro.
Ravel - A primeira estrela a surgir foi o compositor Maurice Ravel (1875-1937), autor do Bolero,
que nasceu no País Basco e morou a maior parte da vida em Paris. Filho de mãe
basca e de pai francês, Ravel é considerado um compositor modernista. Mas
também era tímido, sensível, íntegro, frágil de saúde, sofisticado, elegante e
reservado. Tinha 1 metro e 58 centímetros de altura, mas sua música o
transforma em um gigante imortal, até hoje.
Admirador do Oriente, mantinha em
casa um jardim japonês com bonsais (as tradicionais "árvores em
miniatura" da Terra do Sol Nacente), e gostava muito da música russa.
Durante a Primeira Guerra Mundial, fora motorista de caminhão.
E deixou um legado inovador para
a música, porque incluiu em partituras para orquestra instrumentos do jazz,
como o saxofone. 'Eu só sei fazer música', dizia. Na 'linguagem da alma',
Maurice Ravel foi fluente como poucos terráqueos".
Dança cigana
O Bolero fora encomendado a Ravel pela
bailarina clássica Ida Rubinstein. A primeira coreografia do Bolero
foi criada por Branislava Nojinska,
irmã do bailarino Nijinski, e estreiou com grande sucesso, na Ópera de Paris,
em 22 de novembro de 1928.
Bèjart - Na década de sessenta, ainda no século XX, o coreógrafo Maurice Bèjart inovou ao apresentar o Bolero com o bailarino argentino Jorge Donn. Bèjart manteve o argumento
original - a cigana que dança sobre uma mesa e contagia outros dançarinos à sua
volta, com a força do Bolero.
Como se brincasse com o fato de
também se chamar Maurice, como o próprio Ravel, Bèjart consegue criar uma
interpretação iluminada, que se consagra no solo de Donn, sobre um grande
círculo vermelho. Donn estreou essa coreografia em Paris, no ano de 1978.
O telão do CCBB foi tomado pela
performance do bailarno de uma gravação em DVD feita no Japão, na década de
1980 - que faz qualquer público parar de piscar até hoje.
O bailarino que rege - Jorge Donn se apresenta de calça preta, com
o dorso nu e descalso. Dessa simplicidade para dançar o Bolero, surge um dos mais
belos exemplos da integração da música com a dança, num grande espetáculo.
Na performance do bailarino, não
há divisão entre a composição de Ravel e a coreografia de Bèjart. Donn torna-se
o Bolero
vivo, no palco redodo com luz direcionada. Como disse Clarice Miranda,
"a gente vê o som".
Das minhas anotações frenéticas
durante a exibição do vídeo com a performance de Donn, deixo fluir o seguinte:
"Os gestos do tronco e dos braços
são como os de um músico de orquestra. Movimentos que seguem o ritmo, a linha
melódica. Donn é dominado pela sonoridade, pacificamente. Dá forma à música.
Seus pés marcam o ritmo com firmeza.
Enfrentam o chão com coragem. Suas mãos parecem cisnes, répteis. O dorso, os
pés descalsos e as mãos suplicam pela entrega: para voar, decolar, sublimar a
condição humana. Donn ensaia um vôo, o aquecimento das asas (braços), prontas e
frescas para um primeiro mergulho do penhasco, na direção da liberdade
absoluta.
Ele reage. Como um homem preso à Terra,
mas que ousa exigir a poção divina que o criador depositou em si. Vira 'deus'
instantâneo, a cada novo passo. Deixa que a música de Ravel seja seu
instrumento, para transcender a condição mortal.
Em seus gestos, joga beijos. Suplica
das entranhas que todos que o vêem façam o mesmo. Insiste nas mãos espalmadas.
Como se quisesse 'contaminar' o público, comover pela força da catarse que lhe
provoca a música de Ravel.
A mãos e os olhos querem doar energia,
ensinar a dançar, a voar, a fazer arte, a celebrar a vida. Não é mais homem. É
ave, garça, cobra, um Noé que dança para salvar sua Arca da ira de Deus, um
corpo a serviço da arte. Humano que serve à música, à coreografia. Ritmo puro.
Bolero de pele humana, olhos pintados, mãos generosas. Um homem comum, de corpo
normal, mas com asas - nos pés, nos braços, nas mãos, nas pernas, na alma.
Donn brinca com a luz dourada que o
ilumina, como se com o sopro do Criador. Cada vez que ergue o corpo e olha para
cima, parece receber do divino a força necessária para continuar o seu
sacrifício no palco. Orgulhoso, feliz,
pleno. Nem homem, nem mulher mais. É arte pura, luz viva, inspiração,
iluminação. Quase uma vingança contra tudo que é escuro, feio, triste, pequeno,
medíocre. Pura superação. Arte viva. Até cair ao chão, solidário ao último e
mais forte acorde do Bolero."
Orquestra - Maurice Ravel criou a primeira versão de o Bolero para orquestra em 11 de janeiro
de 1930. O que marca a apresentação orquestral é a presença da caixa clara,
instrumento que segura o ritmo da música, repetindo-o 164 vezes. Tocada com
baquetas (bacchetta), nesta peça é
preciso manter fixa a esteira de metal, na parte inferior.
Parece um tambor de marcha
militar, mas que conclama para a paz, a festa, a celebração - como num moderno
Festival de Dionisio. Uma convocação à vida, uma grande enunciação. Sopro que
prepara o espírito para a melodia, que é repetida 17 vezes por diferentes
instrumentos.
Ravel trabalha a modulação do Bolero
(altera a tonalidade) de forma magnífica, quando toda a orquestra está tocando
em Fortíssimo.
O encontro do CCBB apresentou, um
a um, os instrumentos empregados na execução da peça de Ravel: caixa clara,
flauta tranversal, clarinete, requinta e fagote, oboé, saxofone (soprano e
tenor), trompete (com surdina), trompa, flautim, trombone, clareone, celesta, (primeiro
e segundo) violino (com arco); viola, violoncelo (cellos) e contrabaixo (sem
arcos, em pizzicato); pratos, bombos e harpa.
Karajan - Com os ouvidos mais aguçados, o público assistiu à
atividade que encerrou este primeiro encontro: a exibição do Bolero de Ravel executado pela Orquestra Filarmônica de Berlim, com
regência do maestro Herbert von Karajan. O DVD apresentado no CCBB é uma
gravação de 1985, feita na sede da orquestra.
Considerado um dos maiores
regentes de todos os tempos, Karajan estreiou na Filarmônica de Berlim em 1938
e faleceu no dia 16 de julho de 1989, aos 81 anos. Pouco antes de seu
passamento, o maestro emociona neta gravação do Bolero, ao comandar uma das maiores orquestras do planeta sem
batuta.
Com mais de setenta anos e já com
dificuldades para se locomover, Karajan emociona com sua genialidade de sempre,
que parece gritar contra a aparência frágil e os cabelos brancos. Mesmo com
movimentos limitados e dificuldade para andar, o maestro vive toda a
grandiosidade da música de Ravel, nas mãos incansáveis, de grande pianista.
Filho de médico e músico amador,
Karajan já se apresentava em Salzburg, ao piano, antes dos dez anos de idade. Virtuose, tornou-se conhecido pelas
interpretações de peças de Mozart e Liszt.
Quando menino, era estimulado
pelas noites musicais na casa dos pais. Estudava de três a quatro horas de
piano por dia, mas parou de tocar devido à uma inflamação no tendão de uma das
mãos.
Voltou-se para o estudo de
regência. Fundamental foi a sua vivência
como filho de um clarinetista da Orquestra do Mozarteum, de Salzburg -
exatamente a primeira que Karajan regeu, , em 23 de janeiro de 1929, após
terminar o curso de regência na Academia de Música de Viena. Neste primeiro
concerto, comandou a execução de Dom Juan, de Strauss, e um concerto
para piano de Mozart.
O maestro que dança - Na apresentação do Bolero, o que mais chama a atenção é a semelhança de movimentos
entre as mãos do bailarino Jorge Donn, na coreografia criada por Maurice
Bèjart, e de Herbert von Karajan, ao reger a Filarmônica de Berlim. Donn
dançando parece um maestro. E Karajan regendo é um bailarino.
Assim vejo essa feliz comunhão
entre música e dança, que Maurice Ravel teria aplaudido com certeza, para o seu
belo Bolero. Por isso, anotei o
seguinte, ao rever Karajan regendo:
"As
mãos do maestro e a partitura do Bolero,
de Ravel, assimilada até os ossos. Nada mais e a orquestra obedece, sem piscar.
No início, só a mão esquerda conversa com os músicos. A direita, sobre o peito,
fica alerta. Parece dormir, mas está desperta. As duas mãos voam, leves, antes
do oboé. Karajan ergue a cabeça. Cada dedo da mão de um senhor, cada osso
supera as marcas do tempo e comanda uma orquetra inteira.
As
duas mãos, como um bailarino, dançam. Parece Jorge Donn, só que com mais força.
Precisa superar a velhice, a dureza dos traços, a resistência aos movimentos.
Com uma leve erguida da mão direita, chama a trompa. A mão quase se fecha.
Pulsa. Mas os dedos de Karajan também parecem cabeças de cobras, como os de
Donn.
O
homem idoso, elegante no seu fraque impecável, de cabelos alinhados em cada
milímetro, parece rezar ao reger. O botão prateado na lapela, tem forma de
cruz. O grande maestro suplica por forças e a música de Ravel parece responder.
Karajan
quase cruza as mãos, uma sobre a outra, como Jorge Donn. Toca piano no ar. Seus
grandes olhos, cansados, ganham mais e mais vida. Superam o corpo, apoiado num
aparador.
O
maestro contrai as mãos e o dorso. Move os braços e, num gesto hercúleo, traz
mais vida das entranhas para a ponta dos dedos. Imita Jorge Donn, no mesmo
movimento da coreografia de Bèjart.
Karajan
ignora a velhice. Dança com as mãos e o rosto. Os músculos que lhe restam.
Tomado de força, faz um círculo no ar, quando toda a orquestra executa o Bolero.
Celebra
a vida e a arte. Desaparece diante da grande orquestra, quando o foco muda e
enquada os músicos de frente. O negro de sua roupa funde-se aos ternos dos
músicos. E à calça preta de Jorge Donn.
O
maestro de belos cabelos, que chega a parecer Beethoven no palco, volta a ser
moço. Ganha mais cor nas maçãs do rosto.
No
milagre de um instante, Ravel toma seu corpo, como faz com o bailarino Donn,
que se joga ao chão, exausto. No último acorde, chacoalha todo o corpo de
Karajan e, por luxo, despenteia seu cabelo branco."
O que resta após a dança dos
Maurices (Ravel e Bèjart), Jorge Donn e do maestro Herbert von Karajan?
-
BRAVÍSSÍMO!!!!!!!!!!!
1 Comments:
olá
gostava de poder usar a imagem das notas de musica para divulgar um programa da SEM IGUAL RÁDIO em www.semigualradio.com
Posso?
Agradeço alguma resposta.
Atenciosamente.
Vítor Maia
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