Monday, June 16, 2014

Caminhos da música

“Bolero de Ravel e um alongamento d'olhos: a regência do bailarino Donn a dança do maestro Karajan” é a crónica de Cris Campos composta depois de uma caminhada que terminou de forma inusitada.
Cris Campos

São Paulo - Num sábado à tarde, uma caminhada pelo Centro de São Paulo terminou de forma inusitada. Após uma tromba d'água, daquelas que te obrigam a descansar o guarda-chuva - que não protege dos pingos que sopram de cima abaixo, junto com o vento -, um encontro abordou "O Bolero de Ravel - a obsessão do ritmo".

Uma hora e meia de alongamento de olhos, abertura de ouvidos e coração. O final do exercício, que integrou o projeto "Caminhos da música - Encontros de formação de platéia" do Centro Cultural Banco do Brasil, foi um irresistível movimento de mãos.

Os aplausos em pé nunca serão suficientes para agradecer ao músico Maurice Ravel pela sua composição do Bolero, nem ao coreógrafo Maurice Bèjart pela criação do balé e pela escolha do solo do bailarino argentino Jorge Donn, tampouco ao maestro Herbert von Karajan, que regeu sem batuta uma das mais belas interpretações do Bolero, com a Orquestra Filarmônica de Berlim.

O aquecimento das pernas acabou em alongamento d'olhos, mas o verdadeiro condicionamento daquela tarde foi da alma.

Crônica para Jorge

Bolero de Ravel e um alongamento d'olhos:
a regência do bailarino Donn a dança do maestro Karajan

Logo que peguei a programação do Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB, cuja programação está em bb.com.br/cultura), de São Paulo, anotei o compromisso na agenda: rever Karajan no dia 12 de março, das 16h às 17h30.

Chegou a tarde de sábado tão esperada. Saí do restaurante Satori e uma chuva de vento pegou-me na Praça Carlos Gomes. Minha admiração pelo grande maestro fez-me esperar meia-hora em um sebo. Parada estratégica, que me fez encontrar mais dois títulos, que acomodei na bolsa, junto à biografia Conversando com Karajan, de Richard Osborne (traduzida para o Português por J. E. Smith Caldas, na impressão da Editora Siciliano, de 1992).

Perto da Catedral da Sé, andei pelos calçadões molhados e muito lisos até a rua Álvares Penteado, onde fica o belo prédio do CCBB.

Às dezesseis horas, começou o curso. Térreo do edifício, sob a bela cúpula de vidro que deixa a luz do dia entrar, platéia montada diante de um grande telão. Dois músicos profissionais se posicionaram nas laterais, apostos para a demonstração da caixa clara, instrumento essencial para a execução da partitura do Bolero de Maurice Ravel. Esta espécie de "tambor" de metal, ou pandeiro grande, marca o ritmo grandioso e prepara o terreno para a melodia, repetida 17 vezes até o final, num crescendo até o Fortíssimo, que até a alma aplaude.


O projeto - O tema "Bolero de Ravel - a Obsessão do ritmo" abriu os oito encontros do projeto Caminhos da Música - Encontros de formação de platéia, agendados até dezembro de 2005: "Tributo a Carmem" (9 de abril), "A música e o movimento" (7 de maio), "Tudo pode ser chorinho" (11 de junho), "As vozes do canto lírico" (2 de julho), "Música e imagem" (15 de outubro), "Maestro por um dia" (5 de novembro),  e "Natal lírico" (3 de dezembro). Todos realizados aos sábados, às 11h ou 16h.

O objetivo dos 'Caminhos da Música" é instrumentar a platéia para saborear melhor a riqueza das artes, sobretudo a música, em espetáculos diversos, como: concertos, óperas, balés, apresentações de grupos musicais, ou para aqueles momentos em que nos permitimos ouvir boa música no escuro, num cantinho aconchegante.

E colocar a arte ao alcance do público, seja por meio do manuseio de instrumentos musicais, seja cantando uma melodia ao microfone, ousar passos de dança ali mesmo, ou "brincar" de reger. A iniciativa já tem 11 anos de sucesso.

As professoras - As próprias coordenadoras do projeto "Caminhos da música" repepcionaram o público, com sorrisos e muita cordialidade: Clarice Miranda e Liana Justus. Clarice é musicoterapeuta, cantora (soprano) e compositora.

Liana é mestre em História, especialista em História de Música e pianista. Clarice e Liana são autoras do livro Formação de Platéia em Música, publicado em 2000, e de “Formação de Platéia em Música em CD-Rom e Vídeo”, lançado em 2004 pela Editora Siciliano.

Essas duas damas e professoras são membros da Academia de Cultura de Curitiba e pioneiras em cursos de Formação de Platéia em Música, nas periferias de Curitiba e São Paulo. Milhares de alunos já testemunharam a sua dedicação à música.

Música e dança - Naquele primeiro dia, o mote era a interação da música erudita com a dança e a apresentação dos instrumentos de uma orquestra sinfônica, por meio da genial seqüência criada por Ravel para a entrada dos diversos sons na evolução do Bolero.
Também se abordaria a história da criação da peça, um pouco da vida de Maurice Ravel e a influência de sua música na dança do século XX, sobretudo com as coreografias modernas. Uma fila de talentos surgiu na tela e, assim, voou a hora e meia do encontro.

Ravel - A primeira estrela a surgir foi o compositor Maurice Ravel (1875-1937), autor do Bolero, que nasceu no País Basco e morou a maior parte da vida em Paris. Filho de mãe basca e de pai francês, Ravel é considerado um compositor modernista. Mas também era tímido, sensível, íntegro, frágil de saúde, sofisticado, elegante e reservado. Tinha 1 metro e 58 centímetros de altura, mas sua música o transforma em um gigante imortal, até hoje.

Admirador do Oriente, mantinha em casa um jardim japonês com bonsais (as tradicionais "árvores em miniatura" da Terra do Sol Nacente), e gostava muito da música russa. Durante a Primeira Guerra Mundial, fora motorista de caminhão.

E deixou um legado inovador para a música, porque incluiu em partituras para orquestra instrumentos do jazz, como o saxofone. 'Eu só sei fazer música', dizia. Na 'linguagem da alma', Maurice Ravel foi fluente como poucos terráqueos".

Dança cigana
O Bolero fora encomendado a Ravel pela bailarina clássica Ida Rubinstein. A primeira coreografia do Bolero foi criada por Branislava Nojinska, irmã do bailarino Nijinski, e estreiou com grande sucesso, na Ópera de Paris, em 22 de novembro de 1928.

Bèjart - Na década de sessenta, ainda no século XX, o coreógrafo Maurice Bèjart inovou ao apresentar o Bolero com o bailarino argentino Jorge Donn. Bèjart manteve o argumento original - a cigana que dança sobre uma mesa e contagia outros dançarinos à sua volta, com a força do Bolero.

Como se brincasse com o fato de também se chamar Maurice, como o próprio Ravel, Bèjart consegue criar uma interpretação iluminada, que se consagra no solo de Donn, sobre um grande círculo vermelho. Donn estreou essa coreografia em Paris, no ano de 1978.

O telão do CCBB foi tomado pela performance do bailarno de uma gravação em DVD feita no Japão, na década de 1980 - que faz qualquer público parar de piscar até hoje.

O bailarino que rege - Jorge Donn se apresenta de calça preta, com o dorso nu e descalso. Dessa simplicidade para dançar o Bolero, surge um dos mais belos exemplos da integração da música com a dança, num grande espetáculo.

Na performance do bailarino, não há divisão entre a composição de Ravel e a coreografia de Bèjart. Donn torna-se o Bolero vivo, no palco redodo com luz direcionada. Como disse Clarice Miranda, "a gente vê o som".

Das minhas anotações frenéticas durante a exibição do vídeo com a performance de Donn, deixo fluir o seguinte:

"Os gestos do tronco e dos braços são como os de um músico de orquestra. Movimentos que seguem o ritmo, a linha melódica. Donn é dominado pela sonoridade, pacificamente. Dá forma à música.

Seus pés marcam o ritmo com firmeza. Enfrentam o chão com coragem. Suas mãos parecem cisnes, répteis. O dorso, os pés descalsos e as mãos suplicam pela entrega: para voar, decolar, sublimar a condição humana. Donn ensaia um vôo, o aquecimento das asas (braços), prontas e frescas para um primeiro mergulho do penhasco, na direção da liberdade absoluta.

Ele reage. Como um homem preso à Terra, mas que ousa exigir a poção divina que o criador depositou em si. Vira 'deus' instantâneo, a cada novo passo. Deixa que a música de Ravel seja seu instrumento, para transcender a condição mortal.

Em seus gestos, joga beijos. Suplica das entranhas que todos que o vêem façam o mesmo. Insiste nas mãos espalmadas. Como se quisesse 'contaminar' o público, comover pela força da catarse que lhe provoca a música de Ravel.

A mãos e os olhos querem doar energia, ensinar a dançar, a voar, a fazer arte, a celebrar a vida. Não é mais homem. É ave, garça, cobra, um Noé que dança para salvar sua Arca da ira de Deus, um corpo a serviço da arte. Humano que serve à música, à coreografia. Ritmo puro. Bolero de pele humana, olhos pintados, mãos generosas. Um homem comum, de corpo normal, mas com asas - nos pés, nos braços, nas mãos, nas pernas, na alma.

Donn brinca com a luz dourada que o ilumina, como se com o sopro do Criador. Cada vez que ergue o corpo e olha para cima, parece receber do divino a força necessária para continuar o seu sacrifício no  palco. Orgulhoso, feliz, pleno. Nem homem, nem mulher mais. É arte pura, luz viva, inspiração, iluminação. Quase uma vingança contra tudo que é escuro, feio, triste, pequeno, medíocre. Pura superação. Arte viva. Até cair ao chão, solidário ao último e mais forte acorde do Bolero."

Orquestra - Maurice Ravel criou a primeira versão de o Bolero para orquestra em 11 de janeiro de 1930. O que marca a apresentação orquestral é a presença da caixa clara, instrumento que segura o ritmo da música, repetindo-o 164 vezes. Tocada com baquetas (bacchetta), nesta peça é preciso manter fixa a esteira de metal, na parte inferior.

Parece um tambor de marcha militar, mas que conclama para a paz, a festa, a celebração - como num moderno Festival de Dionisio. Uma convocação à vida, uma grande enunciação. Sopro que prepara o espírito para a melodia, que é repetida 17 vezes por diferentes instrumentos.

Ravel trabalha a modulação do Bolero (altera a tonalidade) de forma magnífica, quando toda a orquestra está tocando em Fortíssimo.

O encontro do CCBB apresentou, um a um, os instrumentos empregados na execução da peça de Ravel: caixa clara, flauta tranversal, clarinete, requinta e fagote, oboé, saxofone (soprano e tenor), trompete (com surdina), trompa, flautim, trombone, clareone, celesta, (primeiro e segundo) violino (com arco); viola, violoncelo (cellos) e contrabaixo (sem arcos, em pizzicato); pratos, bombos e harpa.

Karajan - Com os ouvidos mais aguçados, o público assistiu à atividade que encerrou este primeiro encontro: a exibição do Bolero de Ravel executado pela Orquestra Filarmônica de Berlim, com regência do maestro Herbert von Karajan. O DVD apresentado no CCBB é uma gravação de 1985, feita na sede da orquestra.

Considerado um dos maiores regentes de todos os tempos, Karajan estreiou na Filarmônica de Berlim em 1938 e faleceu no dia 16 de julho de 1989, aos 81 anos. Pouco antes de seu passamento, o maestro emociona neta gravação do Bolero, ao comandar uma das maiores orquestras do planeta sem batuta.

Com mais de setenta anos e já com dificuldades para se locomover, Karajan emociona com sua genialidade de sempre, que parece gritar contra a aparência frágil e os cabelos brancos. Mesmo com movimentos limitados e dificuldade para andar, o maestro vive toda a grandiosidade da música de Ravel, nas mãos incansáveis, de grande pianista.

Filho de médico e músico amador, Karajan já se apresentava em Salzburg, ao piano, antes dos dez anos de idade. Virtuose, tornou-se conhecido pelas interpretações de peças de Mozart e Liszt.

Quando menino, era estimulado pelas noites musicais na casa dos pais. Estudava de três a quatro horas de piano por dia, mas parou de tocar devido à uma inflamação no tendão de uma das mãos.
Voltou-se para o estudo de regência.  Fundamental foi a sua vivência como filho de um clarinetista da Orquestra do Mozarteum, de Salzburg - exatamente a primeira que Karajan regeu, , em 23 de janeiro de 1929, após terminar o curso de regência na Academia de Música de Viena. Neste primeiro concerto, comandou a execução de Dom Juan, de Strauss, e um concerto para piano de Mozart.

O maestro que dança - Na apresentação do Bolero, o que mais chama a atenção é a semelhança de movimentos entre as mãos do bailarino Jorge Donn, na coreografia criada por Maurice Bèjart, e de Herbert von Karajan, ao reger a Filarmônica de Berlim. Donn dançando parece um maestro. E Karajan regendo é um bailarino.

Assim vejo essa feliz comunhão entre música e dança, que Maurice Ravel teria aplaudido com certeza, para o seu belo Bolero. Por isso, anotei o seguinte, ao rever Karajan regendo:

"As mãos do maestro e a partitura do Bolero, de Ravel, assimilada até os ossos. Nada mais e a orquestra obedece, sem piscar. No início, só a mão esquerda conversa com os músicos. A direita, sobre o peito, fica alerta. Parece dormir, mas está desperta. As duas mãos voam, leves, antes do oboé. Karajan ergue a cabeça. Cada dedo da mão de um senhor, cada osso supera as marcas do tempo e comanda uma orquetra inteira.
As duas mãos, como um bailarino, dançam. Parece Jorge Donn, só que com mais força. Precisa superar a velhice, a dureza dos traços, a resistência aos movimentos. Com uma leve erguida da mão direita, chama a trompa. A mão quase se fecha. Pulsa. Mas os dedos de Karajan também parecem cabeças de cobras, como os de Donn.
O homem idoso, elegante no seu fraque impecável, de cabelos alinhados em cada milímetro, parece rezar ao reger. O botão prateado na lapela, tem forma de cruz. O grande maestro suplica por forças e a música de Ravel parece responder.
Karajan quase cruza as mãos, uma sobre a outra, como Jorge Donn. Toca piano no ar. Seus grandes olhos, cansados, ganham mais e mais vida. Superam o corpo, apoiado num aparador.
O maestro contrai as mãos e o dorso. Move os braços e, num gesto hercúleo, traz mais vida das entranhas para a ponta dos dedos. Imita Jorge Donn, no mesmo movimento da coreografia de Bèjart.
Karajan ignora a velhice. Dança com as mãos e o rosto. Os músculos que lhe restam. Tomado de força, faz um círculo no ar, quando toda a orquestra executa o Bolero.
Celebra a vida e a arte. Desaparece diante da grande orquestra, quando o foco muda e enquada os músicos de frente. O negro de sua roupa funde-se aos ternos dos músicos. E à calça preta de Jorge Donn.
O maestro de belos cabelos, que chega a parecer Beethoven no palco, volta a ser moço. Ganha mais cor nas maçãs do rosto.
No milagre de um instante, Ravel toma seu corpo, como faz com o bailarino Donn, que se joga ao chão, exausto. No último acorde, chacoalha todo o corpo de Karajan e, por luxo, despenteia seu cabelo branco."

O que resta após a dança dos Maurices (Ravel e Bèjart), Jorge Donn e do maestro Herbert von Karajan?

-          BRAVÍSSÍMO!!!!!!!!!!!




1 comment:

  1. olá
    gostava de poder usar a imagem das notas de musica para divulgar um programa da SEM IGUAL RÁDIO em www.semigualradio.com
    Posso?

    Agradeço alguma resposta.

    Atenciosamente.
    Vítor Maia

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