Monday, June 16, 2014

O menino que pega avião no céu e a menina de pés e mãos que voam

Crônica sobre o espetáculo "Aviões & Arranha-Céus - Um Monólogo Manipulado", criado por Ricky Seabra e Andrea Jabor em 2002 e apresentado em Portugal e no Brasil.
 Cris Campos

A obra encerrou três dias da programação "Habitar a Imagem" do Itaú Cultural, de São Paulo, em 23 de julho - dentro da grade da exposição Cinético_Digital. De 06 a 10 de novembro de 2005, "Aviões" serão apresentados ao vivo em Paris, na Menagerie de Verre.

Parte 1: Crianças que fazem arte

Quando o menino Ricky viu um avião pela primeira vez, tentou segurar o aeroplano com a mão direita e quase conseguiu. Naquele instante, a turbina do seu coração rugiu no giro máximo e a alma de artista da criança de Washington alçou o primeiro vôo.

No Brasil, a menina Andrea imitava a bailarina do filme que assistia. Seus pés quase acompanharam os movimentos, mas não saíram do chão. A dança fisgara seu coração naquele exato momento. Mas foi quanto suas mãos tocaram o monitor de tevê, que ela soube que as sapatilhas a fariam voar.

Se não ocorreu exatamente assim, não importa. Fato é que, cerca de vinte anos depois, Ricky Seabra encontrou Andrea Jabor. E foi depois da semeadura de arte que o Universo fizera nos dois.

A germinação precisou de muitas viagens e estudos, aperfeiçoamento, apuração do olhar, coreografias e carinho com o sonho de fazer arte e de nunca parar de brincar como criança. Até que chegou o tempo da colheita. Isso aconteceu por volta de 1995, quando começaram a criar juntos. Ele, um designer e performer; ela, bailarina, coreógrafa e diretora.

Dez anos mais de trabalho e criação, chegou a maturidade artística que o Universo reservara de presente àquelas duas crianças. A recompensa por não se deter um avião com as mãos, ou fazer os pés com sapatilhas decolarem: a iluminação de habitar imagens, criar espetáculos multimidia-transartísticos, onde a arte e a história de vida de cada um conversam ao pé-de-ouvido com o público.

Numa platéia lotada de 270 lugares, ora um menino, ora uma menina falaram baixinho ao meu ouvido. O menino Ricky e a menina Andrea fizeram, naquele palco, arte. Arte de primeira grandeza, gerada das mãos do artista - manufaturada, manutenida, manipulada. Assim, eles viraram luz e, como partícula-onda, revisitaram imagens, memórias, a si mesmos, a gente. Habitaram imagens no espetáculo e na minha cabeça. Hoje, habitam em mim também.

Ricky segurou um avião por algum tempo, na imagem da tela grande. Também entrou pelos corredores de um escritório do World Trade Center e mostrou como olhava as torres gêmeas deitado no chão e lá do alto, no Observatório. Ele continua com os olhos no céu.

No monólogo interpretado por Ricky, a dinâmica da direção de Andrea dá sabor de dança ao espetáculo.

Porque as mãos que concentram a queda das torres, após o beijo dos jumbos naquele 11 de setembro; e que contam a história do pôr-da-lua duplo, durante um vôo noturno de avião; são as mãos de Ricky, dirigidas e encenadas pelas mãos de Andrea.

Porque as memórias de aviões e arranha-céus hoje são mais tristes do que quando ambos eram crianças e brincavam de pegar avião e de dançar com mão e pés fora do chão.

Foi o que senti, depois de assistir ao espetáculo "Aviões & Arranha-Céus - Um Monólogo Manipulado", criado por Ricky e Andrea em 2002 e apresentado no sábado à noite, em 23 de julho de 2005, no Itaú Cultural, em São Paulo, Brasil.


Parte 2: O espetáculo

Chegamos em três. Eu, minha prima Miriam e o filho dela, Thiago, de 16 anos. Assistir ao espetáculo "Aviões & Arranha-Céus - Um Monólogo Manipulado", no Itaú Cultural, era o programa daquela noite de sábado. Fomos caminhando, pois a avenida Paulista é perto de casa. Primeira visita deles a São Paulo. Estréia de todos nós, perante a arte de Ricky Seabra e Andrea Jabor.

Em cima da hora, pegamos os três ingressos gratuitos na bilheteria, com alívio de não perder a chance de saborear arte. Na Sala Itaú Cultural, o grande teatro do prédio, sentamo-nos nas extremidades da direita, na duas primeiras filas. Quase não havia mais lugar vago.

Tudo pronto. Celulares desligados, corpos acomodados. Corações e mentes abertos. Olhos curiosos.

Telona branca, uma mesa de trabalho no palco, como as dos estúdios de criação de qualquer artista - cola, caneta, papel, fios, recortes, um pouco de tudo. Papéis espalhados no chão, com margem queimada, moldura de fogo. E um homem. É o próprio Ricky Seabra. Aplausos para ativar a atenção do Olimpo e voilá.

Pensamento número um:
-          Estou diante de um "animador de imagens", uma espécie de controlador de marionetes virtuais. Faltam bonecos. Como seriam? Alienígenas?

Debaixo do foco de uma lente de filmadora digital, presa a um braço de ampliador, a história de "Aviões & Arranha-Céus" começa a ser contada por duas palmas de mãos, com desenhos de aviões no seu centro. O zoom in evidencia as dobras e as figuras de carvão das aeronaves na pela humana. Máquina de pele-pintada. Pele de fuselagem.

Zoom out e se evidencia que as mãos em questão são de um homem. "Se é que artista tem sexo em cena."

E voltam as palmas e os aviõezinhos. Ambas lembram, numa coreografia triste, como caíram as duas torres do World Trade Center, de Nova Iorque, no atentado terrorista de 11 de setembro de 2001. A segunda, inconformada, quase grita seu último urro primal, para terminar como começou.

Nas mãos do artista, a narrativa chega perto do público pela força de ampliação da imagem da tela grande. A mesa de trabalho, peça de cena, vira tela mental, nosso cinema. E imagens (de miniaturas de aviões, fotos e gravuras) entram e saem de foco, sobre as folhas que seguram as mãos de Ricky. Aviões e arranha-céus. Manuseia na sua frente o que o público vê, em tamanho gigante, no fundo do palco e atrás do artista.

A performance de Ricky tem um leve sotaque. Talvez por ser filho de americano e bisneto de português.

Pensamento número dois:
-          Parece carioca. Ou português? Tem um esse arrastado, cantado.

O texto do "monólogo" prossegue. O narrador tenta voltar no tempo, no exato momento em que a imagem de um objeto voador denominado avião era referência de "invenção genial, símbolo da modernidade e da rapidez de transporte na Terra". Se congelado, este momento também daria significados aos arranha-céus mais antigos: "maravilhas da engenharia, o máximo do trabalho de equipe".

Símbolos positivos, em significante e significado. Ícones de poder e de superação da condição humana e Mortal.

 O artista pergunta:

-          Onde começaram os atentados de 11 de setembro, que mudaram as imagens, o imaginário sobre aviões e arranha-céus?

As respostas possíveis trazem ao discurso do espetáculo uma pausa dramática, de making of. De repente, Ricky fecha um grande livro. Minha paixão pela Literatura agradeceu. Tela lacrada no palco. Vazia. E volta a mão, fragmentada em alguns dedos no foco. Bate os dedos sobre a capa dura, como quem pára para refletir.

A sonoplastia confirma: ele descarta uma possibilidade de resposta com um monossílabo de negação:
- Hã, hã.

Vira a página da História, abre o livro novamente e narra outra possibilidade de achar o fio da meada.

A origem da "nova imagem" que domina as mentes terrestres, sobre aviões e arranha-céus, é investigada por uma, duas, três alternativas de respostas à questão da causa dos atentados.

Pensamento número três:
-          Onde estaria o primeiro insight de se imaginar um avião como um "Molotov" gigante, que poderia ser arremessado contra um arranha-céu? O primeiro filho da puta que pensou isso não poderia ter sido fulminado com um raio de fúria do Criador do Universo? O que será desta nossa espécie medíocre?

Ao final de cada relato, que mescla dados concretos - como o atentado terrorista anterior contra as torres gêmeas - e imagens do filme "Inferno na torre", com Paul Newmann - Ricky fecha o livro.

O performer manuseia, no palco de "Sobre Aviões & Arranha-Céus", todas as artes - dança, música, literatura, cinema, teatro, música, desenho. E conta história ao vivo como se dançasse uma coreografia. Mão de Andrea Jabor, diretora do "monólogo", bailarina e coreógrafa.

Voltam as imagens de ficção e de realidade. Telona congela naquele corpo deitado de mulher. Foto em preto e branco. Olhos fechados. Corpo cheio de ondas. Os olhos querem enganar o coração. Parece uma bailarina, uma modelo em pose difícil. Até que Ricky entra na imagem cerebral dentro da gente e diz, com todas as letras, que ela matou-se, ao pular de um arranha-céu, na década de trinta, em Nova Iorque, por desilusão amorosa. Caiu sobre um carro.

Pensamento número quatro:
- Para sair da Terra, fez parte do prédio alto por alguns instantes. Voou pela primeira e derradeira vez. Entrou para a história e destruiu o que pôde, na sua queda-livre: um automóvel. Pele de pele. Aço de aço.

Novas imagens de arranha-céus. E idéia-de-girico de fazer o Zepelim pousar no topo do mais alto prédio da Grande Maçã, nas mãos de Ricky, arrancam gargalhadas da platéia. O recorte da imagem de um prédio e o zepelim arisco a vento, que parece voar de ré, aliviam um pouco a densidade do espetáculo. Lembram os teatros de bonecos, o circo, as brincadeiras lúdicas, as aulas mais inspiradas na escola, Vila Sésamo, Glub-Glub.

E vêm os bonecos. Bush, Saddam, Osama. Com uniformes militares camuflados. Brigam nas mãos de Ricky. Todos apanham. Por manipular a imagem de aviões e arranha-céus para seus fins. Por fazer-nos de bonecos reais. Diferente do jeito que se segurava um Falcon, ou uma Barbie, ou Emília, as mãos de adulto do menino de Washington, naquele palco, mostram raiva. Castigam os bonecos sem dó, na medida adequada para aquele contexto. Não eram bonecos Vudu, infelizmente.

No meio do espetáculo, lembrei-me da imagem deletada, depois do filme pronto, em que a teia do Homem-Aranha prende um helicóptero entre as torres do WTC. Como se o Deus Chronos tivesse que mandar um grande STOP! à gana(ânsia) do homem, ou à simples mania de fazer planos, cálculos e projetos para o futuro. Justo o tempo que nunca pertencerá aos terrestres.

E mais imagens e trilhas sonoras novas mantêm-nos em velocidade de cruzeiro e vôo alto durante o espetáculo. As imagens das cidades futuristas e fantásticas de "Blade Runner" e "O Quinto Elemento" aguçam nossa memória. Enquanto elas brilham a telona, a mente é animada por um grande baile de neurônios vizinhos, com suas sinapses ousadas, que remetem ao bebê de "2001- Uma odisséia no espaço", à teoria de que o centro do Universo está dentro de cada ser vivo - frase lembrada pelo golfinho falante do seriado "Sea Quest", do Steven Spielberg.

Pensamento número cinco:
- Hollywood reinventa a realidade com suas "imagens virtuais", de ficção. E as "imagens reais" tentam superar a arte, no bombardeio que recebemos pelo canal mais comum: a CNN. Aquele Live ("Ao vivo" no Brasil e "Directo" em Portugal) no canto da tela da tevê era a coisa mais surrealista que Salvador Dali poderia imaginar: o real. Afinal de contas, quem se alimenta de quem - a imagem real, ou a virtual? Quem é inspiração para quem? Onde está nossa imagem real?

Ricky Seabra mistura também trechos de sua história de vida e de ficção à narrativa do espetáculo que idealizou junto com Andrea Jabor. Conta de sua paixão por aviões, dos desenhos que fazia de grandes prédios, que nasceriam acima dos arranha-céus e que batizara de "Colossus". Relata como foi a sua primeira visita ao World Trade Center, nos primeiros dias como morador da cidade de Nova Iorque, para onde fora estudar arte. Relata como era, no observatório do 107º andar:

-          Encostar os pés e o nariz no vidro e olhar para baixo. A ponto do Brooklin era deste tamanho (e mostra poucos centímetros com o polegar e o indicador de uma das mãos). O aço dentro da mão. A mão que comporta tudo, de cima. O "Dedo de Deus", numa esfera mais humana.

Quando arrasta a sua cadeira pelo palco e entra na imagem interna de um escritório do WTC. Desvia das filas de mesas de trabalho e chega à janela. Dança sentado, como se voltasse no tempo. Mistura realidade e ficção. Vira imagem no palco e dá vida à gravação caseira, feita há muito tempo, quando incorpora a sua sombra à imagem na tela. "Habita a imagem", como requereu o espetáculo, na concepção que desenvolveu junto com Andrea Jabor.

"Aviões & Arranha-Céus" termina. Repara-se no equipamento preso à cabeça de Ricky. E ele volta a ser um artista multimidia, no palco, que foi um menino que gostava de aviões e arranha-céus e que sente saudades do tempo em que aviões e arranha-céus tinham uma imagem mais simples, mais alegre. E isso era real.

Hoje, essa imagem é ficção, sobretudo para quem tem até quatro anos de vida. Mas pode ser habitada pela arte. Sem a arte, esta referência boa, resgatável, estaria perdida no tempo-espaço, no não-lugar, ou presa no ciberespaço.

Para quem esteve na apresentação de "Aviões & Arranha-Céus" em São Paulo, Lisboa, ou estará em Paris, significados quase esquecidos são novamente introjetados.

Porque imagens de "Aviões & Arranha-Céus" passam a habitar em nós.

Não por acaso, levamos para casa duas páginas das folhas que compuseram o cenário. Em uma delas, a letra de Ricky Seabra e fragmentos do poema "For a moment: tenderness", que é declamado no espetáculo.
***
Ficha técnica

"Aviões & Arranha-Céus, Um Monólogo Manipulado"
Criação: Ricky Seabra & Andrea Jabor
Idéia original, texto e performance: Ricky Seabra
Direção e encenação: Andrea Jabor
Desenho de luz e técnica: An de Hondt
Produção: Kunstencentrum nOna, Mechelen, Bélgica
Montagem de vídeos: Guido Van Troost
Montagem de trilha: Ricky Seabra
Sonoplastia: Marc Nukoop & Atilla Nemeth
Operação de luz e coordenação técnica: José Geraldo Furtado
Produção executiva: Fomenta - João Braune
Direção e produção: Ricky Seabra & Andrea Jabor
Duração: 70 minutos
Agradecimento: Academia do corpo de Bombeiros da Província de Antuérpia
Animação em computador: generosamente realizada pela Medialab/Atos Origin Engineering Services B. V., Holanda
Dedicação: a Sander Waring Harden (1997-2003)
Site de Ricky Seabra: http://www.rickyseabra.com
Site de Andrea Jabor: http://www.andreajabor.com.br
O site de "Aviões": http://www.rickyseabra.com/avioesearranhaceus.html

No comments:

Post a Comment