Sunday, June 15, 2014

Amancio Prada: Concerto Nº 1 para a Lua

O concerto e a expectativa de cantar no Brasil pela primeira vez não vinha mais de um músico estrangeiro. Um homem elegante e gentil, que tive a honra de conhecer numa ensolarada manhã de quinta-feira. Porque Amancio Prada é maior do que a sua música. É universal. Olé, Amancio!


por Cris Campos

Foto: site oficial

Prelúdio I.Lento; com profondo sentimento.

A Lua recebeu os convidados toda prateada, quase cheia, sobre a porta de entrada do Theatro São Pedro. Lá do alto, invejava as luminárias na parede da casa de espetáculo - círculos perfeitos de luz branca. Orgulhosa, a grande senhora do céu guardava aquele local, na região Central de São Paulo, no Brasil, como a um tesouro.

São Pedro, o senhor do teatro - dono das chaves das portas do céu e santo do tempo, na chuva e na seca -, ordenou que as nuvens fossem dormir.

A rainha do céu alongava em vão os raios de luz emprestada do Sol. Tentava chegar à platéia do teatro. Não podia entrar com os humanos. Parecia aflita. Mas não chorou. Ficou altiva, elegante e sorridente. Porque sempre estará no coração dos grandes artistas, dos que se deixam tomar de amor, como Amancio. Ela sabe que Prada ouve os murmúrios dos poemas e recria a música em suas composições.

Depois que vi Amancio no palco do teatro, entendi a angústia da Lua. Foi o coração de passarinho cantante e o prateado dos cabelos do músico que revelaram o segredo, o tesouro escondido naquele teatro, numa noite mágica de sexta-feira:

Amancio esvaziou-se da condição humana e se apresentou puro:
metade poesia e metade música. O próprio Filho da Lua.




Fuga I.
Andante. Allegro. Veloce. Allegro vivave e brilhante.


A Lua não entrou, mas estava presente em todo "canto". Porque a platéia do São Pedro é redonda. Como a cúpula de cor creme que guarda um grande lustre de metais dourados. Os pingos de cristal brilham sobre as cadeiras vermelhas do térreo e dos dois balções, que abraçam o palco.
Antes de Amancio pisar o centro do tablado, de madeira clara em tiras, rodei olhos e ouvidos pelo local. O sangue Guttierres de minha mãe ajudou na percepção sensorial, como fez durante a conversa com Amancio, na véspera do show.

Duas colunas de grandes caixas pretas de som marcavam as extremidades do palco. No centro da luz direcionada, instrumentos e apetrechos musicais aguardavam a hora do trabalho. Do lado esquerdo, um violoncello descansava sobre uma cadeira, coberto por um reconfortante pano branco com estampas em índigo. Outro cello silenciava à direita, no chão, sem proteção contra o ar-condicionado. No primeiro plano, estantes baixas, cheias de partituras, de costas para o público.

Um banco preto de piano no centro das luzes. Que saudades de minhas aulas de música. O lugar de Amancio. À frente do banquinho, um descanso para o pé esquerdo. Microfone com pedestal, modelo Roberto Carlos, pronto.

Algo colorido no chão quebrou a seriedade do cenário. Estiquei a miopia atrás da lente de contato. Parecia uma colcha de fuxicos (redondos de retalhos de tecidos, costurados à mão. Um buquê de flores do campo, coloridas, num papel vermelho. Ao lado do cello da esquerda, pétalas de cara para a platéia.

O rojo também está nas cadeiras e na grande cortina do palco, com franjas douradas. No alto, a moldura em ouro guarda o brasão TSP entalhado. E um verde-água dá suavidade às cores fortes, no acabamento do teto, nas linhas dos balcões. Anuncia o musgo das cortina laterais dos dois andares. Creme são as paredes e o teto, como um delicioso sorvete com sabor de vida. Do São Pedro.

Tudo lembra Amancio e a Espanha de certa forma. Doçura, elegância e leveza, como a música dele à primeira vista/ouvida. O vermelho das touradas, da paixão e do sangue quente da cigana Carmem está também ali, a todo tempo, como nas palavras ligeiras da minha avó Antonia, que fugiu da Guerra Civil Espanhola. De Granada para o Brasil. A pedra granada também é vermelha.

Aquele show, promovido pelo Instituto Cervantes, pelo Consulado General de España, prometia trazer um pouco da cultura castelhana para São Paulo. Mas o que vi foi a Espanha daqui, de todo lugar. Latinidad e hispanidad como uma coisa só. Brasilidade. Humanidade. Musicalidade. Amorosidade. Fraternidade.


O sotaque de Amancio, o falar mais seco, com pausas mais dramáticas vinha das duas mulheres à frente. Um gigantesco zumbido em "Portunhol" crescia. Como uma orquestra desafinada, cheia de músicos perdidos. O São Pedro falava.

Enquanto tocavam os três sinais antes do espetáculo, eu e poucas pessoas mantínhamos o silêncio. Aos poucos, a vida humana invadia a platéia. Fantasmas vivos no teatro, ansiosos, à espera do grande artista. Alguns tão tristes quanto os instrumentos mudos no palco.

- Cadê Amancio? Onde estão os olhos verdes, os belos cabelos de neve? E a magia daquela música eterna?

Terceiro sinal e o diretor do Instituto Cervantes de São Paulo saúda a platéia. Resume o currículo de Amancio Prada com o mesmo orgulho que se via na Lua lá fora:

"O primeiro disco fora lançado na França. A partir da segunda obra gravada, o artista dedicou-se puramente à composição. E recebe críticas unânimes até este momento, como no The New York Times, que destacou o timbre, a capacidade dramática de Amancio".




Espetáculo I.
Andante sostenuto e cantabile.


Primeiros aplausos e Amancio entra acompanhado de duas mulheres, que tomam os cellos nas mãos. Prada abre o "primeiro encontro" com o público brasileiro dizendo:

- Buenas noches. Boa noite.

A resposta vem imediata, em Português de bom som:

- Boa noite.

Dedilha a guitarra e diz "versos do romance":

"quiero vir a tal ventura
como las aguas del mar".

Solta a voz devagar, dedilha as seis cordas da guitarra espanhola e chama os cellos.

Preto e branco dominam os viventes que ocupam o palco. Três andantes. Saia branca e blusa preta do lado direito, roupa preta do outro, Amancio de camisa branca, calça e casaca preta. E o cabelo branco e preto.

"Miras el lirio
que o tiempo lhe consume".

"Tu és el lirio,
que dá-me tu perfume".

Fecho os olhos e não vejo mais um músico espanhol. Ouço Toquinho, Baden, Rafael Rabello.

Amancio volta ao ritmo espanhol e acelera o toque, mais seco e mais forte. Ouço uma tourada. Batida de flamenco. Finalmente, a voz de Amancio enche todo o teatro.

Canta os primeiros trovadores galego-portugueses, dos séculos XII e XIII. Uma cantiga de amor, de uma "moça namorada" e seu "cantar de amor", que fala ao "nosso senhor" e pede pelo "amigo", no seu "cantar". Quase um fado. Porque Amancio consegue - naquele lamento, no grito de amor da voz e do violão, cantar direto para os deuses. Ou para a Lua. Assim foi sua interpretação de "Unha moça namorada", inspirada no poema de Lourenzo.

A segunda peça, "Muito me tarda" (o meu amigo na Guarda), é mais rápida. Segue o clima de encantamento, em homenagem a "Sancho I de Portugal".

Porque a terceira canção, inspirada o poema "En Lisboa sobre lo mar", de João Zorro, pede no arranjo os dois cellos e a guitarra Prada. Parece um canto de mulher o sertão, quase chorado. Ou "Romaria" de Elis. E é alimento para a alma.

"Barcas novas mandei labrar,
e no mar as mandei deitar".

"Barcas novas mandei fazer
e no mar as mandei meter".

Vejo minha mãe cantando, enquanto trabalha em casa. O jeito de falar alto, cantando a vida com sofreguidão, cantarolando trechos em espanhol. Ouço ao longe tio Manolo e tio Tonico. Às vezes, um exagero de quem tem "sangue quente", espanhol.

Amancio bate nas cordas, desperta a guitarra, mas assobia para remediar. Como se diz na Costa Rica, esta música é Pura Vida! E cantarola a melodia, como se brincasse no palco. Pé esquerdo no suporte.

"Cuando los enamorados
van a servir al amor."

A afinação, o poder da voz limpa de Amancio comovem. Ele homenageia Juan de la Cruz, "o poeta mais alto da Língua Castelhana", que é "um enamorado de Deus".

"Llama de amor viva,
en una noche escura".

Os cellos choram de emoção no palco. Preparam os corações do público para uma dose de beleza pura. Anunciam o mundo sutil.

Não pode ser só um homem, um violão, um violão, duas mulheres e seus cellos. A bela voz de Amancio, sob os holofotes, na frente da grande cortina vermelha. Fala de "lámparas del fuego", "calor e luz". Não é um cantante, um músico dedicado. É a alma espanhola, a "hispanidad", que entoa. A humanidade que canta. Ali, na minha frente.

É tão lindo que queria ser uma flor, para poder ficar deitada no palco, na exata hora do show de Amancio Prada. Queria ser uma flor amarrada e feliz, tomada de música. De certa forma, todos no Theatro São Pedro viraram flores, aos pés de Amancio.

Prada pega uma flor vermelha e dá à moça de saia branca. Canta para a Galícia. Acomoda a guitarra sobre um cachecol xadrez. Instrumentos e panos de aconchego. E vem uma música mais animada:

"Eu teño um canciño
que veu la Marola
e baila o fandango
ben ben ben
cuha perna sola".

"Vem bailar, Camiña,
Carmiña, Carmela
con zapato branco
con media de seda
con media de seda
de seda calada
vem bailar, Carmiña,
miña namorada".

Amancio vira um gajo, um belo gajo. A moça da esquerda até tira o casaco preto para continuar a tocar o cello.

"Rosalía de Castro, poeta galega" anuncia Prada. Duas canções, que dedica aos imigrantes.

"a todos los que están lejos
de donde quisieran estar
y a los que ya no están".

"Morro-me de solidão".

Eu sabia. Ele sempre foi daqui. Amancio é brasileiro. Porque é trovador. Dá vida à poesia. Reinventa a música. E canta feliz. Batuca e cantarola, assobia e sorri. E toca tão bem que parece um menino de brincadeira no palco do teatro. É um menino. Com a pronúncia arrastada, quase portuguesa. Não disse? Amancio é brasileiro. É o português da padaria. É nosso. É do mundo.

Anuncia Federico García Lorca. E no cantar cada corda o acompanha, fiel, amiga, entregue à reconquista de mais um dia, ao encantamento do grande amor, do amor à arte, à música. Correspondido ou não, o amor está naquele palco. Mora nas cordas, brinca de esconder no buraco da guitarra. Vem e volta ao peito, entra e sai da cabeça, desvenda lembranças nos acordes de Amancio. Vejo seu rosto, pertinho, porque ouço um canto de amor, para o amor e pelo amor. Vôo de saudades.

"Si tú eres el fuego,
yo soy la llama".

Porque o poema de Amancio diz:

"Tengo en el pecho una jaula,
en la jaula dentro um pájaro,
el pájaro lleva dentro del pecho
un niño cantando en una jaula
lo que yo canto".

Maravilha! Porque Amancio agora me traz Papa Uemba, da África. E alguns mineiros daqui, como Lô Borges, Flávio Venturini. E Villa Lobos com seus toques brasileiros de orquestra. Ouço uma orquestra. E a música não é da Espanha. É de todo lugar. É universal.

"Más limpio que agua de oro".

Fechei os olhos durante o show de Amancio e descansei a cabeça. Vi novamente o meu amor, que não estava ali. Nem estava na música. Porque está em mim, onde a melodia ecoa. O toque de alma daquele espetáculo ligou o meu silêncio. Que é a morada dos olhos dele. Porque o meu amor faz música no meu coração, onde o ritmo é teu nome; não é tum-tum.

Só quando Amancio pára de tocar, volto a mim, na platéia. Aos aplausos de pé do teatro do santo, o músico reage. Fica de pé, sob o facho de luz, na beirada do palco, mais perto do público. Canta. Ergue os pés e as mãos. É só voz, expressão, corpo, música pura. Não pode ser humano. Parece filho da luz, ou da Lua.

Pega a zanfoña, que dormia num pedestal. Acomoda o instrumento no colo. Amarra um cinto. Gira uma manivela com a mão direita. Com a esquerda, trabalha as cordas. O que ouço é uma gaita de foles (não por acaso gaita galega também), ou um carro de boi do Nordeste do Brasil. Um murmúrio afinado. Celesta arrastada sem orquestra. Para acompanhar a voz de Amancio, um dos intrumentos mais lindos que já ouvi. Antônio Nóbrega da zanfoña. Mestre estrangeiro da rabeca (que é sanfona e peixe no dicionário). Paulinho da Viola de Madrid.

Prada acelera o ritmo e o público bate os pés no chão. Platéia responde no piloto-automático, como brasileiros, espanhóis, baianos. Calcanhares no assoalho lembram touradas e rodeios, flamenco e carnaval. Prova incontestável: a música é a linguagem da alma. Amancio pára e, no último acorde, só a voz.

Após quase duas horas de espetáculo, ninguém deixa a platéia. Nem os aplausos, para alegria da Lua.

Amancio volta. Mais uma. Batuca com as mãos no peito, na altura do coração. Faz eco, brinca com a própria voz.

"cómo chove miudiño
cómo se espeta no chan,
cómo baila a muiñeira
a muller do meu irman".

Carlinhos Brown castelhano. Dono do swing da vida, "instrumento" vivo da música.

"Ai lalelo ai lalelo
ailalelo, lalo".


24.06.2005

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